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domingo, 5 de setembro de 2010

Contrastes Humanos

Em A Garota da Fábrica de Caixa de Fósforos, o diretor finlandês Aki Kaurismaki, o mesmo de O Homem Sem Passado, aborda a frieza e a indiferença nas relações humanas, numa Helsinque cinzenta e estacionada no tempo. Realçadas pela ausência de diálogos com mais de uma linha de texto, esses sentimentos desprovidos de humor e afeto e marcados pelo isolamento ganham um contorno dramático, através de personagens que, em países latinos, seriam diametralmente opostos.


A rotina da empregada da fábrica de caixas de fósforos é mimética e sem novidades, assim como a ação das máquinas que montam as pequenas caixas de fósforos em série. A rotina de sua família também. Tudo parece girar em torno de uma eterna repetição de dias intermináveis. Inevitavelmente, não há como desassociar o ambiente finlandês de dias frios e cinzentos com o clima no interior das pessoas. A mãe de Íris é uma dona de casa cansada e entediada com toda razão. O pai, provavelmente desempregado ou aposentado, vive largado em cima de um sofá, desperdiçando seus dias entre uma tragada do cigarro e outra, entre um noticiário de TV e outro, tentando em vão preencher o vazio irremediável. Íris é a única que trabalha e ganha o aparente único sustento da família.

Longe de casa, ela tenta se divertir numa balada que mais parece um baile da terceira idade, animado por frequentadores cafonas e música brega. Ao que parece este é o lugar para se divertir na Finlândia dos anos 70, época em que o filme é ambientado. Malfadada pelos descaminhos do sexo oposto, ninguém a chama para dançar. Mas até a pobre Íris parece farta daquilo. É quando ela decide mudar de ares e frequentar um pub. O lugar é decadente, frequentado por bêbados e meia dúzia de rolling stones. Mas é aí onde ela conhece um sujeito sem graça, tão interessante quanto um torniquete, com cara de quem, na verdade, está à procura de uma noitada com uma garoita de programa qualquer.

Desesperada por viver algum tipo de aventura amorosa e sentir-se mulher de vez em quando, Íris e a versão humana de um torniquete passam a noite juntos. Pela manhã, ele, claro, a confunde com uma prostituta e deixa uma nota de dinheiro na mesinha ao lado da cama. Ela, boba, acreditava no amor e o convida mais tarde para conhecer seus pais. O encontro é rápido e desprovido de qualquer interesse de conversa de ambas as partes, mas no jantar em um restaurante a seguir, ele desfaz seus sonhos de mulher e seus planos de começar uma vida a dois, com uma sinceridade cruel, digna de um torniquete que desconhece a ética humana. Mas o pior ainda estaria por acontecer. Íris desconhecia que fazer sexo sem camisinha e no seu período fértil produzia bêbês e ela se vê grávida do instrumento tosco do seu desprazer. É quando ela decide escrever uma carta contando sobre a gravidez e a entrega ela mesma ao inseminador na saída do trabalho.

Provavelmente, movida por uma dose insensível de esperança, Íris tivesse em mente encontrar um homem com quem pudesse se casar, ter filhos, construir uma vida a dois, fugir da casa dos pais e do vazio entediante em que sua vida havia se tornado. Porém, depois de ouvir "nada me encanta tão pouco quanto o seu amor," ela vê sua tola esperança ser deixada no prato que mal tocou no restaurante e deixa pra trás seus planos de independência. Dias depois de entregar a carta àquele que havia lhe inseminado, Íris recebe uma linha de resposta - "livre-se do pirralho." Nada mais previsível do que fazer um filho com um torniquete. Mas o pior ainda estaria por acontecer. No hospital, depois do aborto, o pai lhe visita com uma tangerina e a decisão de expulsá-la de casa.

No pálido e gélido cotidiano de uma Helsinque atrasada no tempo, vivendo em um ambiente sem humor e em meio à uma realidade dura e de poucas palavras, Íris começa uma nova vida, alugando um apartamento para morar e armando um plano macabro. Seu destino impiedoso e sem concessões produziu nada além do que um desespero de vingança e, claro, o pior ainda estaria por acontecer. O que você acha que ela faria com um vidro de remédio para ratos que ela compra na farmácia ? Não, ela não se matou.

O filme explora o limite humano diante de sucessivas decepções e uma vida insuportável. É sabido que o povo nórdico é econômico nas palavras e nas demonstrações de afeto, mas em A Garota da Fábrica de Caixas de Fósforos essa frieza e distanciamento extrapolam os limites do compreensível, como se esse cenário fizesse parte de uma realidade longe deste planeta. Não faz muito tempo que uma de minhas alunas norueguesas me revelou que não se lembrava do dia em que o pai lhe dera um beijo. Lembrei esse episódio enquanto assistia ao filme de Kaurismaki, buscando na prática algo que me fizesse acreditar que o afeto e o humor poderiam muito bem ser os principais produtos de importação por aquelas paragens.


2 comentários:

  1. Mario, que saudades de vc., sua sensibilidade e bela visao de mundo. Bons dias de Berlitz. Estou ouvindo seu ultimo podcast musical. Maravilhoso. Continue nos brindando com sua inteligência. Vera Lucia Kirdeiko

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  2. Vera! É um prazer tê-la por perto de alguma forma. Fico feliz que esteja gostando dos posts seja de música ou de filmes. Beijo grande do amigo, Mário.

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