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domingo, 12 de outubro de 2014

NO TOPO DA CONTRACULTURA


Depois de assistir ao filme, John Lennon convenceu o pessoal da Apple a comprar os direitos de exibição de El Topo, de Alejandro Jodorowsky, para passá-lo nos cinemas underground de Nova Iorque. Isso foi suficiente para transformar o filme numa obra cult de grande sucesso e ganhar da crítica a alcunha de "intrigante obra-prima".

A contracultura é um movimento que teve seu auge na década de 1960, trazendo um estilo de mobilização voltado para a contestação social. Jovens inovaram estilos, voltando-se mais para o antisocial aos olhos das famílias mais conservadoras, com um espírito mais libertário. Nessa onda surgiram o movimento hippie, a liberação feminina, o sexo livre, as ondas místicas a partir do budismo, as viagens cibernéticas inspiradas em Aldous Huxley, entre outras extrapolações de comportamento. No cinema, uma verdadeira avalanche de filmes “cabeça” tornaram-se blockbusters nas famosas sessões da meia-noite e nos cines underground. As conversas partiam de Jung, atravessavam todos os famosos psicanalistas e acabavam cumprindo um trajeto vertiginoso passando pela filosofia e as religiões orientais. Criou-se a figura do “bicho-grilo” e do “maluco-beleza”. A piração libertária generalizada era sinônimo de erudição, politização e consciência espiritual na busca por uma transcendência que oferecesse qualquer outra coisa além do mundo que conhecemos.


O diretor, roteirista e ator franco-chileno Alejandro Jodorowsky era um desses malucos-beleza que, em 1970, lançou a sua controvertida obra-prima El Topo, título que, em português, quer dizer A Toupeira, um filme cabeça onde se encontra absolutamente tudo que a contracultura valorizava: simbolismos cifrados, sigmas, metáforas, linguagem subliminar, representações, alegorias, misticismos, surrealismos, bestialidades etc. O caldeirão interpretativo de dar nó em miolos se estende por mais de duas horas de projeção no seu longa bicho-grilo, filmado inteiramente no deserto, o que não poderia ser em outro lugar, pois o deserto desempenhou na imaginação popular dos adeptos do movimento uma espécie de lugar santo de onde a vida começava e lá também terminava, uma ideia até certo ponto respaldada nas viagens da banda The Doors, que no deserto encontrou inspiração para os seus sucessos, fumando maconha, viajando com mescalina e lendo As Portas da Percepção de Huxley. Mas El Topo não é uma droga de filme e tampouco um filme-droga. Pelo contrário, Jodorowsky nos dá uma aula de como interpretar os desmandos da sociedade a partir de um retrato caricato bastante criativo e inspirado.

Esse é um filme para ser visto e analisado a partir de uma visão subjetiva. Qualquer crítica que o apresente deve, primeiramente, esclarecer que a observação dos fatos não ocorreu durante uma viagem de peiote, apesar do roteiro não ajudar muito a sua autodefesa. A questão é a seguinte: no melhor estilo western spaghetti do Sérgio Leone, numa região encrustada no deserto mexicano, surge a figura de um cowboy justiceiro imbuído de derrotar os quatro deuses do lugar (hmmm), o que, leia-se nas entrelinhas, os deuses que protegem toda a humanidade. Sua primeira batalha é com um coronel manipulador e sanguinário que se divertia dizimando vilarejos. Do grotesco ao sublime, o filme tem de tudo. Mas não tente interpretar todos os sigmas que aparecem na tela, pois chegará um momento em que você estará completamente confuso, dando pausa no filme a cada 15 segundos. Deixe a imaginação cavalgar no lombo de um cavalo enquanto acompanha o ator principal em suas contendas surrealistas, porque chega um momento em que a sua capacidade interpretativa acaba pegando no tranco a coice de esporas.

Apesar de surpreendentemente violento, o gigantismo usado nas cenas acaba transformando o visual numa alegoria cômica. Há passagens seriamente hilárias, como a metamorfose de comportamento de uma cowgirl agressiva para uma lésbica apaixonada, o padre que mostra numa missa que deus faz milagres usando para isso a roleta russa com os fiéis – claro que alguém acaba se estrepando – ou as cenas dos embates do justiceiro, que busca o poder de um deus, dando cabo daqueles que já se diziam deuses. Imagino que Jodorowsky tenha se perguntado se, num mundo com tantos deuses, não haveria uma guerra entre eles para que um conquistasse o comando supremo. Faz sentido. Aqui, o aspirante a deus não confia no próprio poder, mas consegue vencer os quatro imortais no deserto sem maiores problemas, e como em time que tá ganhando não se mexe, até que uma derrota espantosa aconteça para dobrar a arrogância, o pobre descobre que é mortal... pasme... a balas disparadas pela lésbica, que havia se apaixonado pela sua mulher, a ex-amante do coronel. Aqui o filme descamba para uma segunda parte, sem o justiceiro.


Nesta segunda parte, Jodorowsky coloca em prática a justificação do título do seu filme. A toupeira é um animal que vive embaixo da terra, cavando buracos, e quando ela chega à superfície é cega pelo sol. Para representar as toupeiras, Jodorowsky escolheu a classe dos deficientes físicos e há um grande grupo deles vivendo numa caverna, liderados por uma quase drag queen transformada em deusa. Na verdade, essa percepção é meramente visual, com a suspeita de que os deuses são todos andróginos. Contudo, quando uma anã lhe corta o cabelo de Divine e a barba de Maomé, descobrimos se tratar de um homem comum, sem qualquer divindade, mas com um mínimo de sinapses para descobrir uma maneira de cavar túneis e salvar os aleijados da escuridão e do ostracismo. Acompanhado pela anã, com quem acaba se casando no vilarejo onde as ações passam a acontecer, o ex-pseudodeus empreende-se no seu projeto sob a terra e consegue salvar a todos. Infelizmente, depois da euforia da salvação e em plena caminhada para a liberdade, a chusma de renegados acaba abatida a balas na rua principal do vilarejo pela elite do lugar. Aqui ficamos sabendo que o ex-pseudodeus não era ex nem tampouco pseudo, mas um deus de verdade, que, ao ver o fim daqueles por cuja liberdade ele havia lutado tanto, desiste do mundo ateando fogo em si mesmo. No fim, a anã, sua mulher, dá a luz a um filho e deixa o vilarejo na garupa do cavalo de um ex-inimigo do seu marido morto, ou do seu deus sepultado. Bem, enfim... eu preciso tomar uma água gelada.


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

DECÁLOGO: EPISÓDIO V - KRZYSZTOF KIESLOWSKI

A pena de morte é um assunto polêmico em qualquer sociedade. Mas a discussão ainda parece longe de ser conduzida de maneira holística e sensata, isto é, analisando os contextos sociais da criminalidade, e isenta de sentimentalismos revanchistas e justiceiros daqueles que defendem a punição capital. O confronto direto entre a brutalidade de um crime decidido pela lei e outro cometido por um indivíduo coloca a bestialidade humana no centro dessa discussão e revela o modelo arcaico de se punir a violência por meio da própria violência. A questão não envolve apenas um sistema de justiça que valoriza e prefere a retribuição em vez da reabilitação, mas encerra-se numa visão materialista de que a morte física basta para eliminar o mal, expurgar aqueles que seguem na contramão da construção social e representam uma ameaça às sociedades.


Quando atos são julgados pelas suas consequências e desprezamos a razão pela qual eles foram cometidos, invariavelmente, descartamos qualquer possibilidade de entendê-los com o interesse numa solução de tratamento ou, simplesmente, em encontrar uma maneira humanamente exemplar de lidar com o problema. Ou seja, eliminamos o problema sem o discernimento necessário para compreendê-lo diante da incapacidade de resolvê-lo. Em suma, o homem responde a esse problema com a violência porque tanto o justo quanto o injusto, nesse caso, não conhece outra forma de expressão do seu pensamento. O primeiro mata por índole ou fraqueza enquanto o segundo mata com o respaldo da lei.


Baseado na mandamento "não matarás", Kieslowski não parece emitir qualquer julgamento neste quinto episódio de Decálogo ao criar o cenário perturbador de um crime hediondo, cometido por um jovem que, a princípio, parece apenas vagar sem ter o que fazer. Aos poucos sabemos que ele, na verdade, está ocupado em fomentar alguma forma de expressão para as suas angústias interiores. Após o crime, conhecemos a sua história, percebemos as suas fraquezas, a sua incompetência para lidar com as suas tristezas e, sobretudo, a razão da sua transformação pessoal, de um jovem pacato e tranquilo do interior para o criminoso que caminha para a morte. Nesse ponto, Kieslowski levanta a questão do ser humano no centro do problema e ao fazer crescer o lado humano constrói uma realidade na qual a humanidade padece no esquecimento do seu lado prático.

Decálogo V não nos coloca diante apenas da questão da pena de morte, mas além dela, no centro da questão das penas da vida, quando o verbo ainda está muito distante dos valores fundamentais para uma sociedade realmente sadia na prática, quando a religião não basta para entender o ser humano e suas falhas e os princípios, sejam eles quais forem, ainda se curvam diante das emoções em detrimento da razão.