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sábado, 9 de maio de 2009

Gestações Brasileiras 1

O documentário obstinado e destemido de Vladimir Carvalho é um dos mais importantes legados culturais brasileiros nas telas - agora devidamente restaurado e remasterizado

Depois de vetado pela censura em 1970, ano em que seria lançado, e ser mantido numa gaveta, até finalmente surgir nas telas em 1979, ganhando o Festival de Brasília, O País de São Saruê, do documentarista Vladimir Carvalho, é um sobrevivente emblemático do cinema-verdade, ou cinema-denúncia, e representa um clássico ensaio documental brasileiro. Emblemático por ser um documento histórico sobre a saga do homem nordestino, com sua história de lamento e esperança, vítima da exploração dos grandes latifundiários e da utopia de uma reforma agrária que já atravessa décadas sem solução.

O filme foi realizado entre 1966 e 1970, durante três viagens de Vladimir e sua equipe à região do Rio do Peixe, no sertão paraibano. O diretor estrutou seu filme em três reinos, como ele denomina: os reinos vegetal, animal e mineral. Tratou de mostrar as raízes da exploração do sertanejo desde os tempos coloniais, a realidade crua do Nordeste, a aspereza de um povo endurecido pelo trabalho e a aridez de uma região que sobrevive a cada dia, como se não lhe restasse futuro. Apresentado inicialmente através da poesia de Jomar Moraes Souto, escrita especialmente para o filme, O País de São Saruê é também um auto de paixão e dor pelo sertão em preto e branco.

O documentário sofreu um sério risco de extinção. Os negativos estavam em péssimo estado de conservação, quando o Centro de Pesquisa do Cinema Brasileiro decidiu restaurá-los. O filme original encontrava-se em más condições óticas, tinha problemas de mecânica e havia contraído fungos. O penoso trabalho de restauração levou um ano e meio até ficar em condições razoáveis de exibição. A equipe levou o trabalho de restauração ao limite e os custos ficaram em 100 mil reais, pagos com o patrocínio da Petrobrás. Isso salvou esse famoso documento histórico chamado O País de São Saruê de ter o mesmo fim de tantos outros filmes nacionais, perdidos ao longo de décadas de censura, esquecimento e maus tratos.

Entre os extra do DVD, lançado pela Vídeo Filmes, estão os curtas A Bolandeira (1967) e A Pedra da Riqueza (1975), duas vertebras tiradas de O País de São Saruê. Há também uma entrevista de 30 minutos com Vladimir Carvalho, feita pelo jornalista Carlos Alberto Mattos, e outra com um dos restauradores do filme, além de uma bela homenagem de Walter Carvalho, por ocasião do aniversário de 70 anos do irmão Vladimir. Em sua entrevista, Vladimir Carvalho fala das situações que envolveram a filmagem de O País de São Saruê e outras curiosidades interessantes de um cineasta de coragem, porque fazer filme-denúncia numa época em que os militares estavam calando a boca de todos com muita tortura, morte e pancadaria não era nada fácil.

"O País de São Saruê, com suas imagens em preto e branco, de grãos estourados, enfocando gente pobre e tão mal trajada quanto o próprio filme, destoava profundamente do cenário que se desenhava em 1971," disse Vladimir. "O clima era de euforia em muitos círculos, e não só no governo militar. Éramos tricampeões mundiais de futebol, em plena vigência do milagre brasileiro. Vivíamos rodeados de aumentativos, jingles e slogans de 'Brasil grande.' Os filmes brasileiros também ficavam 'grandes,' coloridos e vistosos." E ele continua.

"O que restava aos censores, encarregados de examinar meu documentário ? A interdição foi sumária e total. A exibição do filme ficava proibida em todo o território nacional. Mesmo disposto a não ceder qualquer corte, procurei saber quais eram os pontos mais sensíveis. Não havia pontos sensíveis. O fime havia sido censurado na íntegra, sem possibilidade de apelação. O parecer de uma censura, acusando o filme de 'namorar as armas,' deu mostras de que sua autora captara as mensagens subliminares de Saruê. Não sem boa dose de ingenuidade, eu havia introduzido referências às armas no cotidiano dos camponeses. Há a caminhada de um sertanejo com espingarda e foice à mão: homens apontando armas para o alto no mercado; outros empunhando uma foice e um martelo em meio a diversas ferramentas. Numa das cenas em que posou como 'ator,' meu irmão, Walter, conversa com um camponês e, casualmente, devolve-lhe um facão. Essa pequena tomada eu reparti em três segmentos para atribuir o caráter de metáfora."

O título, O País de São Saruê, faz uma irônica referência a um cordel que fala de uma terra prometida, no Nordeste, onde tudo é absolutamente perfeito: os rios têm águas claras e peixes em abundância, a comida é farta, o céu é de veludo, das árvores colhe-se dinheito, o barro é de caramelo e por aí vai na mais perfeita oposição à realidade.

"A prefeitura sempre foi para o povo nordestino do interior o centro de assistência mais importante," diz um político num dos depoimentos finais do filme. "Mas isso não revela ociosidade e aversão ao trabalho, como poderia parecer aos mais vigorosos ou intolerantes. É antes a imagem da pobreza regional. Coisa que não decorre da natureza, nem do temperamento, nem da formação do povo, mas que é o fruto de longos erros acumulados na forma de explorar a terra e na forma de criar e distribuir riquezas. Muitos pensaram à primeira vista que o problema do Nordeste é só o problema da seca e raramente o problema das enchentes. Mas longe da seca e da enchente, muito mais grave é o problema da estrutura agrária. Nós temos a tendência, no sertão, a captar apenas o problema do clima. De fato existe o problema do clima: a seca, a enchente. A seca joga o povo nas ruas. Faz com que esses camponeses humildes, reverentes permanentemente, em quem não se advinha à primeira vista a fibra, a coragem, a decisão de viver e de crescer, percam esta aparente humildade, e se revele em sua grandez a e sua força."

E ele finaliza, "hoje devemos olhar para a terra do sertão como uma área em que podemos criar uma grande civilização. O povo se identifica em sua capacidade de superar esse problema do clima a estabelecer uma sociedade próspera, numa terra rica, em cuja riqueza participem todos."