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domingo, 22 de agosto de 2010

Uma Borboleta no Escafandro

É possível criar um livro apenas com o movimento dos olhos. O exemplo de Jean Dominique deve deixar um grande desconforto naqueles que desperdiçam talentos, gozando de todas as suas funções vitais.

O filme O Escafandro e a Borboleta, do diretor francês Julian Schnabel, narra cruamente a estória de um paciente com uma síndrome de encarceramento provocada por derrame cerebral, que lhe deixou apenas a visão do olho esquerdo. Totalmente paralisado, é com ele que Jean Dominique tenta restabelecer seu contato com o mundo e através da sua única visão passamos a primeira meia hora de filme tão paralisados quanto o personagem. Não há nenhum outro angulo para olhar o mundo, nenhum movimento para mudar a perspectiva, nenhuma opção de comando. A imagem é uma só, turva e repetitiva. Angustiante, mas extremamente educador.

Aliás, o filme acaba por promover uma grande celebração da vida. É possível reciclar valores ao viver a única comunicação que Jean Dominique tem com o mundo à sua volta, e esta reciclagem nos faz admitir: quando perdemos qualquer uma de nossas faculdades físicas, sabemos o quão importante e essenciais elas são para viver. Os pensamentos de Jean são partilhados com o público e revelam um homem de bem com a vida, inteligente, sagaz e de grande tenacidade. Essa fome de viver resiste ao escanfandro em que ele se meteu após o derrame. Ele encontra uma borboleta para fazer seus sonhos bater asas. Nesse momento, a estória é simplesmente sublime. É também mágica a forma como descobrimos a gênesis das idéias de Jean brotando do vazio, do seu claustro particular e do seu aparente mundo vegetativo. Mais do que uma luz no fim do túnel, vemos uma luz refletindo sua alma, tão viva quanto ele era antes do acidente. Essa vida não-física permanece latente, produtiva e surge com uma força tão intensa que seu exemplo nos enche de (justamente) vida!

Por meio de um código criado com a enfermeira, Jean dá vida a um livro narrando seu drama. Com o piscar dos olhos ele codifica palavras, frases e parágrafos. Acompanhamos esse trabalho árduo, mas libertador. Suas idéias são colocadas no papel e cada frase criada é como um açoite para nós que gozamos de todas as possibilidades físicas e mentais para produzir obras e simplesmente deixamos todas em completa negligência, omitimos informações e gratuitamente nos subvalorizamos. Não há como passar ileso depois de asssitir a estória de Jean Dominique. É possível encontrar a essência da vida quando o mundo estiver restrito apenas a uma visão do olho esquerdo. Isso é válido para todo tipo de deficiência que a priori nos causa piedade. É impressionante como o deficiente pode adentrar um universo interior e encontrar lá uma energia tão assustadoramente forte e capaz de mantê-lo talvez mais vivo dos que muitos que gozam de todas as suas faculdades físicas e mentais. O Escafandro e A Borboleta é um filme para causar reciclagem. Se não, é possível que você não esteja usando bem seus dois olhos.

domingo, 8 de agosto de 2010

Simplesmente Dorothy

Apesar do título amendrontador em português (no original o filme se chama apenas Dorothy, o que é bem mais racional e coerente com a estória), Os Demônios de Dorothy Mills traz entre muitas surpresas o trabalho arrebatador da atriz Jenn Murray no papel-título.

O parapsiquismo é uma faculdade natural do ser humano, uma vez que vivemos multidimensionalmente. Para aquele que experimenta qualquer fenômeno paranormal, o parapsiquismo não é o mistério, mas um excelente recurso para desvendá-lo. Tampouco cabe mais ser enquadrado em teorias e nem encontra-se no limbo dos ceticismos. Contudo, além da vivência parapsíquica não ser tão comum quanto sair com os amigos, devido ao restringimento físico, ela se aniquila como consequência de crenças arraigadas, cientificismos materialistas e uma grande variedade de posturas existencialistas que não conseguem enxergar além da realidade física. É justamente nesse ponto que Os Demônios de Dorothy Mills encontra o seu plot.

Apesar de toda campanha propagandista em torno do filme, seu drama passa longe daquele visto em O Exorcista e tampouco pode ser considerado terrivelmente assustador. É apenas um filme coerente sobre paranormalidade e consequentemente bom para ser indicado, o que, para mim, já vale a sugestão. Mas o interesse da máquina de fazer medo do cinema e seu mercado de divulgação é justamente o contrário, a começar pela escolha do título em português. Lamentável se entendemos a real intenção por trás dessa escolha. Mas nem tão lamentável assim se entendermos o título para justificar o mundo da ignorância em que Dorothy vive "suas exquisitices."

O problema das religiões é vender suas verdades como definitivas e enquadrar a mente humana numa única moldura da realidade, essencialmente física, apesar de vagar no domínio espiritual. O alijamento da verdade relativa de ponta, utilizada pela pesquisa científica, endurece a intolerância e promove o preconceito. Tais consequências servem muitas vezes, entretanto, como dissimuladores da incoerência religiosa. Na medida em que não há o exercício da crítica e do livre arbítrio sobre o que acreditar nem a direção a tomar, muitos sucubem diante dos próprios males não revelados. A Igreja não dá conta do que você sente, mas do que deve ser sentido segundo seus preceitos. Numa pequena comunidade religiosa controlada (ou amendrontada) por um padre, essa mordaça tem efeitos ainda mais drásticos e termina por afundar-se em seus próprios segredos e mistérios.

É esse o cenário da estória de Dorothy, uma adolescente vítima de seu parapsiquismo, que apesar de tido como assustador, para muitos é tanto um atributo de sobrevivência espiritual quanto ameaçador. Quando os efeitos do parapsiquismo destrambelhado da menina atinge os membros da comunidade, com a tentativa de assassinato de uma criança, uma psiquiatra é chamada para examinar Dorothy e facilmente ela é diagnosticada como vítima de distúrbio de múltipla personalidade. Porém, quando a menina fala com a voz do filho recém-falecido da médica, o que inicialmente parecia loucura passa a ser o que os moradores acreditam, isto é, que Dorothy é um canal com o mundo dos mortos.

Um interessante estudo sobre a hipocrisia e os preconceitos que corroem uma sociedade pode ser feito a partir do que nos mostra o filme. Por trás da intolerânia dos moradores, sobrevive um segredo tenebroso revelado no final. Muitos usam Dorothy no aquém para lhes trazer notícias de entes queridos que estão no além, em rituais conduzidos pelo padre na própria igreja do lugar! e a fachada criada pelas crendices vai aos poucos ruindo na medide em que Dorothy começa a revelar a verdade, momento em que, fazendo jus ao título, todos os demônios são libertos. Talvez assim, esse título em português faça algum sentido.