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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Entrevista com Eduardo Coutinho - Visões do Documentário

Eduardo de Oliveira Coutinho é considerado um dos mais importantes documentaristas da atualidade. Seu trabalho caracteriza-se pela capacidade que Coutinho tem de ouvir o outro, perscrutar a vida e mostrá-la cruamente com toda a isenção possível. Seus filmes desenrola-se de maneira natural, sendo levados pelo curso dos depoimentos, descortinando universos desde os mais comuns como os mais distantes e desconhecidos. Em sua filmografia, Eduardo Coutinho conta com algumas pérolas, como Edifício Master, Cabra Marcado para Morrer, Santo Forte, Jogo de Cena e Peões. Nessa entrevista, "Visões do Documentário," Eduardo Coutinho nos revela o seu universo particular, a sua forma de criação e seus encantos com a vida.








PARTE 1



PARTE 2



PARTE 3



PARTE 4



PARTE 5



PARTE 6



PARTE 7



PARTE 8



PARTE 9



PARTE 10



PARTE 11



PARTE 12



PARTE 13



PARTE 14

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Evolução Relâmpago

As mudanças possuem uma força impressionante quando têm que acontecer, quando são imprescindíveis e fazem parte do compromisso evolutivo inadiável. Contudo, se o viés motriz da evolução é a mudança, por que resistimos tanto perceber a necessidade de mudar? E, mesmo quando a percebemos, por que é tão difícil reciclar enfim antigos hábitos, atitudes, desconstruir valores desatualizados e torná-los mais saudáveis? Por que estamos amiúde comprometidos com nossos ganhos secundários, envolvidos em pactos mórbidos e imersos em auto-sabotagens nocivas à nossa própria evolução? Evoluir requer coragem para enfrentar o desconhecido, encarar o desafio da renovação e abrir mão do superficial desnecessário; uma coragem conseguida através da vontade inquebrantável. Evoluir começa quando assumimos o comando de nós mesmos e a interia responsabilidade por nossos atos. Evoluir é, portanto, um movimento individual e intransferível.

Entre a intenção e o gesto de mudar, entretanto, há um abismo, ou melhor, um mata-burro que nos impede de prosseguir no caminho da mudança. Hesitamos diante dele, avaliamos os ganhos, tememos o pior, fraquejamos na vontade e receamos dar o próximo passo; esquecemos do nosso compromisso evolutivo, das nossas responsabilidades e do trabalho a ser feito a partir das mudanças. Entramos nos estreitos limites do restringimento físico, esquecemos a realidade pluri-existencial, da nossa procedência extrafísica e desprezamos nossas habilidades para realizar a programação determinada. É sempre mais fácil recorrer ao caminho mais simples e prático, aquele que não exige esforço, e por isso optamos pelo mais desejado em detrimento do que é necessário. Porém, alguns compromissos já estão determinados, o posicionamento consolidado e a vontade estabelecida em algum recôndito intraconsciencial. Basta apenas uma senha, uma imagem, um sonho, um evento, qualquer sinal que nos lembre que eles existem em no universo intraconsciencial e que chegou a hora de colocá-los em prática. Às vezes, é preciso um trem descarrilhar para entrarmos nos trilhos. Outras vezes, é necessário um raio cair bem na nossa cabeça para produzir uma mudança relâmpago. Foi exatamente isso o que aconteceu com Dannion Brinkley.

Em 1975, um jornal da cidade americana de Augusta, no estado da Geórgia, publicou a notícia de que um jovem da Carolina do Sul havia sido atingido por um raio. O jovem se chamava Dannion Brinkley e até então ele nem suspeitara de que houvesse EQMs (Experiências de Quase Morte) e muito menos o que elas significavam. Dannion foi atingido por um raio enquanto falava ao telefone em casa, numa noite de tempestade. A descarga elétrica veio pelo fio do telefone, atingiu o seu pescoço e o levantou do chão. Dannion teve uma parada cardíaca da qual só conseguiu se recuperar horas mais tarde, num hospital, quando os médicos já estavam desenganados da sua recuperação. Em coma, ele sobrevoou o próprio corpo, a sala médica, e foi além, à uma paragem extrafísica para ter com uma equipe de 13 consciências preocupadas com o seu destino na Terra. Reunido com o time que mais tarde ele descreveria como formado por 13 “espíritos de luz,” Dannion viu passar diante dos olhos o filme da sua vida até ali.

Na época em que o raio o atingiu, Dannion era uma consciência pertubada, um "garotão" de mais ou menos 30 anos, com todos os defeitos deslocados de um adolescente no auge da fase da afirmação. Era impaciente, imaturo, intolerante, egoísta, agressivo, briguento, individualista, cruel etc., citando apenas algumas de suas desqualidades. Casou-se com uma mãe, na verdade, a quem chamava de esposa, tal era o zelo e comando desta mulher para com ele. Na pequena cidade em que vivia, Dannion era conhecido pelas suas brigas, confusões e até ações criminosas - ele já havia ateado fogo numa residência com toda a família lá dentro, quando tinha 12 anos, ou perto disso. Enfim, o filme da sua vida lhe apareceu tal um documentário policial, com cenas de violência, refregas e confusões. Quando viu as imagens de tudo de errado que havia feito diante dos olhos, ele ficou triste e chorou. Sentiu na pele, pela primeira vez, a gravidade do seu desvio e as consequências da sua dissidência extrafísica. Estava muito distante da consciência que devia ser para cumprir a programação existencial planejada. Resnascer para Dannion fez com que ele caísse no limbo de um esquecimento noscivo, pois a grande "virada de mesa" existencial, o que veríamos depois, não aconteceria de outra forma senão por meio de uma EQM. Sem o propósito de uma reciclagem séria, ele seguiria em automimese, repetindo os erros da sua índole agressiva.

Quando deixou o hospital pela primeira vez, Dannion experimentou o avanço descomunal do seu parapsiquismo. Ganhou o talento da premonição e uma incrível perceção energética. Podia prever eventos de um futuro distante e ler a história pessoal (holobiografia) de qualquer pessoa que estivesse na sua frente. Além, disso, passou a se projetar com frequência. Nessa época, procurou o dr. Raymond Moody, famoso por seus estudos de EQM e então uma autoridade em experiência projetiva nos Estados Unidos, além de também ser o autor do livro "Depois da Vida" e do ótimo documentário "Vida Depois da Morte," ambos sucessos de venda nos Estados Unidos e, mais tarde, em todo o mundo. O primeiro encontro entre Dannion e dr. Moody aconteceu numa das palestras que o médico dava nos Estados Unidos. "Eu estava fazendo uma palestra numa universidade estadual da Carolina do Sul a respeito de experiências de quase-morte e de meus estudos com pessoas que haviam tido essas experiências profundamente espirituais," conta o dr. Moody. "Durante o período de debates, no final da palestra, Dannion levantou a mão e nos falou de sua experiência. Ele deixou a platéia fascinada com a sua dramática história." Dr. Moody havia lido sobre o caso de Dannion Brinkley no jornal local e desde então ficou  interessado em conhecê-lo.

Os dois voltariam a se encontrar mais tarde, mas, após aquela primeira palestra, Dannion refugou. Com a experiência do debate científico, ele pensou que as suas vivências eram de fato doidas demais para fazer as pessoas acreditarem no que estava dizendo. Ele resistiu aos pedidos do dr. Moody para um novo encontro, mas a obstinação do médico acabou por vencer a sua resistência. "Mais tarde, consegui marcar um encontro para entrevistá-lo e fui à casa dele para ouvir sua história," conta o dr. Moody. "A partir desse dia, a experiência de quase-morte de Dannion Brinkley permanece como uma das mais notáveis que já ouvi. Ele viu o próprio corpo morto por duas vezes, quando saiu dele e quando retornou, e, nesse intervalo, foi para um reino espiritual habitado por seres bondosos e poderosos que lhe permitiram ver sua vida numa completa retrospectiva e avaliar seus êxitos e suas imperfeições. Depois foi para uma linda cidade de cristal e luz, e ficou na presença de treze seres de luz que o inundaram de sabedoria."

Com o dom da premonição adquirido (ou recuperado?) na dimensão extrafísica, após as EQMs, Dannion disse em 1975 que o colapso da União Soviética iria ocorrer em 1989 e que seria marcado por problemas causados pela falta de alimentos. Previu também que uma grande guerra nos desertos do Oriente Médio seria deflagrada quando um país pequeno fosse invadido por um outro maior. Segundo Dannion, as consciências extrafísicas, com quem ele se encontrava durante as EQMs, lhe disseram que haveria um sério conflito entre dois exércitos em 1990. A guerra da qual eles estavam falando era, naturalmente, a Guerra do Golfo. Dr. Raymond Moody e Dannion Brinkley se tornariam amigos íntimos e uma parceria de trabalho nas palestras sobre EQM nos Estados Unidos. Até lá, Dannion teria pela frente uma fase de reciclagens existenciais e intraconsciencias sérias, que lhe exigiriam muito esforço, pois deveriam acontecer em tempo relâmpago, ou seja, na mesma velocidade que o raio havia lhe atingido dentro de sua própria casa, enquanto falava ao telefone. Esse esforço seria recompensado por tudo de positivo que aconteceria a Dannion nos anos seguintes, após essa trasformação, num processo exemplar de coragem para evoluir.

No filme do diretor Lewis Teague, uma produção de 1995, hoje apenas disponível no Brasil em VHS, o ator Eric Roberts fez muito bem o papel de Dannion Brinkley, representando de maneira convincente o período da sua transformação de caráter. Sua atuação elogiada lhe valeu uma indicação ao Prêmio Emmy e ao Globo de Ouro. No período em que passou do bandido odiado pela população da cidade ao mocinho admirado por todos no filme, vemos uma sequência muito boa de exemplos do que acontece quando mudamos nossas atitudes patológicas radicalmente. Em geral, o que vemos é que algumas companhias (físicas e extrafísicas) simplesmente nos deixam de lado (ou as deixamos para trás), outras fazem reciclagens ao mesmo tempo e seguem conosco a nova trilha, outras resistem, mas no fim elas se modificam também e seguem ao nosso lado. Isso é válido tanto para colegas e amigos, quanto para familiares, próximos ou distantes. Sendo a evolução da consciência de caratér individualíssimo, nesse momento, a referência deve estar sempre na nosssa frente, na escala evolutiva, e não nos que ainda estão presos no mimetismo acachapante, improdutivo e espúrio.

O filme do diretor Teague apresenta uma rica sequência de eventos parapsíquicos expostos com muita didática, de fenômenos projeciológicos e o roteiro não deve ter ficado muito distante da realidade conforme narrada no livro "Salvo Pela Luz (Saved by The Light)," que Dannion Brikley escreveu para contar suas experiências, pois não há nada no filme que não possa acontecer com qualquer um de nós na realidade.

Site de Dannion Brikley



quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Sementes da Liberdade

A Revolução Francesa marcou o mundo pela transformação que a força popular causou na França a partir de 1789, mudando o quadro político e social do país e dando início à Idade Contemporânea. Cansados da miséria na qual viviam e dos desmandos da nobreza, o povo se uniu e lutou pelo fim da opressão monárquica, aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios universais de liberdade, igualdade e fraternidade. Em uma frase marcante de Maria Antonieta, ela diz “se o povo não tem pão, que coma brioche.” A situação na França era a de um Estado pobre num país rico. A burguesia tão enriquecida confrontava uma massa de camponeses famintos, onde o trabalho e o sustento andavam muito além do conceito de dignidade e o sentimento de exploração imperava. Algumas décadas mais tarde, na primeira metade do século XIX, a Revolução Industrial fez migrar muitos camponeses para os grandes centros à procura de trabalho. A mão-obra tornou-se excedente e o trabalho se desvalorizou, expondo os trabalhadores a condições de exploração por parte da burguesia financeiramente dominante. O legado da Revolução Francesa sofre, assim, com o surgimento de uma plutocracia dissimulada.

Baseado no livro homônimo de Émile Zola, Germinal é ambientado na França do século XIX e descreve a situação dos trabalhadores das minas de carvão ainda nos primórdios da Revolução Industrial. Com o surgimento das máquinas, o carvão se tornou de extrema importância por ser a fonte de energia para o funcionamento das mesmas. A exploração desse minério passou, entretanto, pelo doloroso processo de exploração de homens, mulheres e crianças, que se aventuravam nos confins subterrâneos para arrancar o sustento de suas famílias. Sem distinção de gênero ou idade, todos eram empregados nas minas. Muitas famílias enfiavam todos os seus membros nesse trabalho para engrossar a renda familiar, pois os baixos salários não permitiam que os homens fossem arrimos de família. Essas famílias, por sua vez, aumentavam a quantidade de filhos para que eles se tornassem uma força de trabalho e renda no futuro. Numa família de nove membros, por exemplo, todos os salários arrecadados com o trabalho nas minas ainda não eram suficientes para garantir o pão na mesa todos os dias. Por outro lado, os patrões, donos das minas, se refestelavam com iguarias das mais nobres em suas mesas e viviam em palacetes. Se antes da Revolução Francesa vemos a nobreza explorando a classe trabalhadora, na Revolução Industrial esse papel ficou por conta da burguesia.



O contexto histórico em que o excelente Germinal, do diretor Claude Berri, foi inserido mostra que o impulso do desenvolvimento tecnológico proporcionado pela Revolução Industrial traz como consequência condições econômicas e sociais inicialmente desastrosas. As corporações de ofício dão lugar às empresas burguesas, fazendo com que o sistema de produção artesanal fosse desmantelado e artesãos camponeses tivessem que correr atrás de trabalho nas cidades industrializadas. Segundo Marx, “o processo capitalista é uma relação de troca tendo o lucro como resultado da expropriação da mais-valia gerada pela força de trabalho," ou seja, o excedente é apropriado pelo capitalista.” A venda de sua força de trabalho é a única solução da classe proletariada para garantir a sua sobrevivência.



No contexto francês retratado no filme, a liberdade passou a não existir. A dependência de se tirar o sutento com um trabalho terrivelmente remunerado amarrou famílias inteiras à exploração no trabalho e a condições impensáveis de vida, além de que as casas em que essas famílias viviam pertenciam aos seus patrões. A igualdade se tornou extinta. Uma alarmante diferença social crescia entre uma minoria burguesa endinheirada e dominante e uma massa de trabalhadores oprimidos e mortos de fome. A fraternidade desapareceu com o ódio que um povo subjulgado passou então a nutrir por uma classe burguesa indiferente à pobreza e cada vez mais rica. Numa das cenas finais do filme, um senhor doente por causa da ingestão de carvão, estrangula fria e repentinamente a filha do dono da empresa para a qual havia trabalhado. O velho doente, moribundo e fraco, levanta-se de sua cadeira, anda calmamente em direção à bela moça e num arroubo de ódio aperta o seu pescoço até ela perder os sentidos e morrer. Essa falta de liberdade, igualdade e fraternidade surge como consequência de um assombroso contraste social o qual, nessa época, marca o retrocesso na prática dos princípios universais. Depois que a Revolução Industrial criou as suas raízes com profundas contradições e injustiças sociais, a chamada Idade Contemporânea despontava da terra com os primeiros frutos do novo mundo capitalista. O terreno não poderia ser melhor para germinar “a necessidade de uma consciência de classe para o início de uma real revolução por parte do proletariado,” segundo Marx. 



Os trabalhadores das minas não tinham garantia de emprego, benefícios, segurança, saúde e eram expostos a cargas de tabalho desumanas de até 16 horas por dia. Recebiam seus parcos salários por uma produção cada vez mais exigente e menos remunerada. Não tinham apoio de sindicatos e associações, nem contavam com leis que os protegessem da exploração dos patrões. Dessa maneira, homens, mulheres e crianças morriam no e/ou do trabalho com o carvão, eram vilipendiados e roubados, trabalhando em condições insalubres e inseguras e sujeitos a toda sorte de acidentes que lhes ceifavam a vida e lhes retringiam o pão, Muitos chegavam a pedir esmolas aos burgueses e acumulavam dívidas nas lojas de alimentos. Por conta da completa penúria, a vida operária era levada por meio de muita luta e privação, sacrifício e esgotamento. Contudo, à sombra de Marx e Engels, surge uma formação embrionária dos agrupamentos de trabalhadores fortemente inspirados na doutrina socialista, destinados a presionar os empregadores donos das minas e a exigir melhor remuneração e condições de trabalho.


A obra de Zola remete ao processo de gestação e maturação dos movimentos grevistas, ou à uma atitude embrionária mais agressiva por parte dos trabalhadores das minas de carvão, na França, contra à exploração de seus patrões. Ao lado da Inglaterra, a França foi um dos países que integraram o conjunto das primeiras nações industrializadas. O diretor Claude Berri tratou de fazer um filme onde a crueza dos fatos tem realmente um papel fundamental para ambientar fidedignamente a obra de Zola e sua intenção foi a de chocar (ou revoltar) as mentes mais socializadas e incomodar aqueles cujos princípios universais funcionavam na prática, tal como era a intenção de Zola. Essa forma contundente com que os acontecimentos no filme são mostrados não implicam, entretanto, partidarismos sociais ou revelam tendências politicamente corretas, confrontadas na velha fórmula de mocinhos e bandidos. Qualquer julgamento deve ficar por conta da análise simples e crua dos fatos, tal qual acontece diante do professor numa aula de história. Muito embora, vale aqui ressaltar, uma sensação de reviravolta revanchista nos acompanhe a partir do momento em que os trabalhadores se revoltam. O que transparece no propósito do diretor é um sinal vermelho para as dificuldades do mundo operário do século XIX. Émile Zola escreveu Germinal no período do surgimento da Internacional Comunista e faz menção a Marx e Engels, assim como ao anarquismo, e isso fica claro no filme através de um dos seus personagens. Para escrever Germinal Zola trabalhou dois meses numa mina de carvão, vivendo tal um mineiro, comendo e bebendo, dormindo e acordando, assim como sofrendo as mesmas augúrias daqueles trabalhadores infelizes e explorados ao extremo. Isso, consequentemente, deu à história um teor realista incontestável. A ótima reprodução de época da película de Berri, uma fotografia sublime e as atuações arrebatadoras de grande parte do elenco reforçam artisticamente a importância dessa produção francesa do romance de Zola. Germinal é imperdível não apenas pelo seu valor histórico, como pelo farto material que a obra nos traz para gerar uma significativa análise das qualidades e vulnerabilidades da natureza humana.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Religião e Holocausto

A palavra Holocausto vem do grego antigo e quer dizer queimado. Tem origens remotas em sacrifícios e rituais religiosos da Antiguidade, em que plantas e animais (e até mesmo seres humanos) eram oferecidos às divindades, sendo completamente queimados durante o ritual. A partir desse uso, holocausto quer dizer cremação de corpos, não necessariamente de animais. Esse tipo de imolação corpórea post mortem, como se evidencia no Livro do Êxodo. A palavra também é encontrada na bíblia católica. A partir so século XIX, a palavra holocausto passou a designar grandes catástrofes e massacres, até que após a Segunda Guerra Mundial o termo Holocausto, com inicial maiúscula, foi utilizado especificamente para se referir ao extermínio de milhões de pessoas que faziam parte de grupos politicamente indesejados pelo então regime nazista, fundado por Adolf Hitler. Havia judeus, militantes comunistas, homossexuais, ciganos, eslavos, deficientes motores, deficientes mentais, prisioneiros de guerra soviéticos, membros da elite intelectual polaca, russa e de outros países do Leste Europeu, além de activistas políticos, Testemunhas de Jeová, alguns sacerdotes católicos, alguns membros mórmons e sindicalistas, pacientes psiquiátricos e criminosos de delito comum. No caso alemão, o Holocausto consistiu em por em prática um plano de genocídio da população judaica. O tipo de crime marcado pelo ódio racial (http://pt.wikipedia.org/wiki/Holocausto). 


Crimes de ódio não são novidade nos filmes do diretor Michael Haneke, que também dirigiu Violência Gratuita. Em A Fita Branca, que ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2009 e concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010, ele procura a origem do crime de ódio mais filmado e analisado do século 20: o Holocausto. A Fita Branca talvez seja o mais solene dos filmes de Michael Haneke. O trabalho mais clássico de um diretor que não abandona seu tema favorito: a capacidade do homem de ser cruel. Costuma-se crer que Hitler chegou ao poder auxiliado pelo rancor que os alemães sentiam após a devastação do país na Primeira Guerra, mas para Haneke o embrião do mal é anterior e a maneira que o diretor austríaco encontra para dar rosto a esse mal é através da agressividade despojada, num pequeno vilarejo alemão às vésperas da primeira Guerra Mundial. Haneke fez um filme amarrado conscientemente nessa analogia com o Holocausto. A Fita Branca ganhou um acabamento refinado, principalmente no fato de ter sido realizado em preto e branco. A conexão do enredo com o nazismo é notado desde as primeiras cenas, quando um narrador anuncia em off que os eventos naquela pequena comunidade prenunciam o que aconteceria em todo o país anos depois.


Embora o subtítulo do filme, "Uma História para Crianças," não apareça na fitas traduzidas para o português, Haneke faz filmes sérios e para adultos. É como se o diretor tomasse a contra-mão para encontrar o caminho certo para o seu drama. Em A Fita Branca, o foco dramático está justamente num grupo de crianças, causando um impacto maior às consequências dos acontecimentos, inicialmente misteriosos. O filme propõe uma reflexão sobre a educação severa que os adultos impõem sobre as crianças. Castigos e surras como forma de punição para a menor das travessuras são mostradas glacialmente. Ainda nos dias de hoje é uma formação usada e que constitui uma distopia social, o que, segundo Haneke, leva ao fascismo. Ou seja, no autoritarismo com que os pais tratam seus filhos difunde-se entre as crianças um vilipêndio por tudo aquilo que não é "certo". As crianças têm uma visão muito peculiar do mundo e estão em formação intelectual e moral. Com exemplos férteis em violência em suas memórias, as sementes plantadas florescerão rápida e ferozmente em direção à intolerância. Haneke utiliza a violência caseira de forma exemplar para mostrar uma tendência ideológica em torno da educação através do medo, o que, para ele, representa um fascismo embrionário.


O diretor constrói o seu filme, não apenas por meio de uma investigação do que era a Europa pré-Nazista, mas como uma alegoria do que os sistemas patriarcais, os regimes autoritários e o fanatismo religioso podem provocar na formação do indivíduo. Para pais e educadores, o filme causa um impacto fulminante, pois sabemos que a violência na maneira de educar as crianças, através de palmadas, surras e castigos, ainda é uma prática habitual. A essência do filme é mostrada em uma cena em que o pai pastor destrói a educação sexual de seu filho, com um discurso castrador de causar pânico no espectador. O fato é que a punição, embalada como disciplina, está enraizada no vilarejo e a fita branca do título é a maneira com que o pastor local pune seus filhos. Ele força dois deles a usá-la no braço, como sinal de vergonha por pecados cometidos, uma antevisão da futura etiquetação antissemita de judeus nos princípios da Segunda Guerra. É oportuno ressaltar o excelente trabalho de direção com as crianças. Todas elas promovem momentos de uma qualidade cênica raramente vista nos dias de hoje, inclusive os de um miniator de apenas quatro anos de idade cujas cenas são impagáveis. Em A Fita Branca, Haneke exibe seu talento para criar climas e tensões e construir pouco a pouco um thriller de terror psicológico que oferece mais perguntas do que respostas.


O enredo é tratado por meio de mistérios. Na medida em que os crimes vão acontecendo no vilarejo, os culpados permanecem no anonimato. O primeiro deles é impactante: o médico do vilarejo está voltando para casa, montado num cavalo, quando um arame esticado entre cercas derruba o animal. Tempos depois, o filho pequeno do barão local se torna vítima de uma violência brutal. Os crimes têm a forma de castigo e não buscam apenas a identidade do criminoso, mas a razão para tal violência. Entre os habitantes, não há sequer suspeitos. Todos aparecem de cara limpa, com feições sem traços de culpa ou de remorso, e sem traço mesmo de ódio, por mais que esse ódio não pare de surgir ao longo do drama. A questão é simplesmente entender quem é de fato a vítima, já que os culpados não parecem deixar pistas nem rastros. Numa comunidade extremamente religiosa, cujos princípios se baseiam unicamente nos ensinamentos do senhor, como pode haver tanta barbárie ? Aqui também vemos uma analogia com a raiz do nazismo, construído a partir da intolerância da Igreja Católica, que, ainda no início do século XIX, condenava judeus à morte acusados de heresia.


Mostrando o rigor da educação caseira, Haneke denuncia que esta educação é calçada no rigor religioso, exposto através de uma doutrina empurrada goela abaixo. Lamentavelmente, por se tratar de um drama real, A Fita Branca nos apresenta um problema atual. O ensinamento religioso mostra o seu lado manipulador, quando idéias são apresentadas de forma absoluta e sem opção de contestação, impostas a pessoas que não têm possibilidade alguma de se defender e seguem uma ideologia como uma forma de escapar da própria miséria. Não há salvação do lado de fora das igrejas. E este não é um problema do fascismo ou do nazismo, mas da raiz do mal que os gerou.