Bem-vindos ao Cinema & Consciência, um novo espaço para a difusão e a discussão do cinema brasileiro e internacional. Vamos falar de filmes ou documentários, discutir ética e estética do cinema, com enfoque nas pessoas, nos temas e nos fatos. Os comentários dos visitantes serão sempre bem-vindos.

Todos os textos neste blog são de autoria de Mário Luna, salvo aqueles em que a fonte for mencionada.
Críticas construtivas e sugestões em geral, envie e-mail para este blogger: cinemaconsciencia@gmail.com

"Não acredite em nada que ler ou ouvir neste blog. Reflita. Tenha as suas próprias opiniões e conclusões"





sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Grey Gardens - O Documentário

No ano de 1973, um escândalo ocupou as manchetes dos jornais americanos. Autoridades locais de East Hampton, uma área residencial nobre no estado de Nova Iorque, tentaram expulsar mãe e filha de uma mansão decadente do balneário de luxo, alegando falta de condições sanitárias. Isso tudo pode acontecer por inúmeras razões, mas, neste caso, mãe e filha se tratavam das ex-socialites Edith Bouvier Beale e sua filha Edie, outrora pertencentes ao crème de la crème da sociedade novaiorquina. Não apenas este fato inflamava as notícias nos jornais, mas, sobretudo, por elas serem, respectivamente, tia e prima de Jacqueline Kennedy Onassis.

A vida intrigante e pertubadoramente interessante de Edith Bouvier Beale e sua filha Edie foi inicialmente tema do polêmico documentário dos irmãos Albert e David Maysles, "Grey Gardens," lançado em1975. Inovadores da técnica do "cinema direto," os irmãos aportaram na mansão de East Hampton com uma camera e um microfone nas mãos e algumas ideias na cabeça. O resultado produziu um compêndio de excentricidades, protagonizado por duas mulheres, cujos diálogos deixariam perplexos Tenesse Williams e Euguene O'Neil. Mas, Grey Gardens mostra muito mais do que isso. O documentário foi feito dois anos depois da reforma da casa, realizada por Jacqueline K. Onassis, mas ainda é possível sentir a presença do abandono, do descaso, do autoflagelo humano e da imundície na qual Big Edie e Little Edie, como eram conhecidas, mergulharam nos últimos 20 anos de convivência na mansão.

O documentário é pertubador na medida em que gera reflexões inevitáveis, pois registra uma natureza humana não muito comum, totalmente incoerente e ilógica. Como duas mulheres outrora frequentadoras da alta sociedade nova iorquina puderam cair num isolamento tão intenso e num auto-abandono tão profundo ? Como uma mulher linda e rica na juventude não conseguiu um casamento, se este era um valor almejado de Little Edie ? Em linha geral fica difícil entender, mas, vendo o documentário conseguimos algumas dicas. A relação mãe e filha sofre da síndrome da ectopia afetiva e retroalimenta uma interprisão grupocármica difícil de anistiar. Ambas têm fortes tendências autofágicas, tanto pelo autoesquecimento quanto pelo autoflagelo em que as duas vivem submersas e dependentes. Há uma mistura de lucidez temporária e loucura quase permanente nas cenas em que aparecem entulhadas sobre as camas, com outras mil traquitandas, em meio à desordem do ambiente, que poderia muito bem ilustrar a desordem interior da vida daquelas duas ex-personagens da aristocracia americana dos anos 30 e 40.

Big Edie, a mãe, cantava. Little Edie, a filha, tinha sido modelo e tentado ser atriz. Ao serem filmadas pelos Irmãos Maisley, o que elas revelaram não era tanto seu comportamento cotidiano, mas as suas interpretações artísticas frustradas no passado. Os Maisley ilustram bem isso ao abusar da imagem da bela pintura a óleo de Big Edie, na qual ela aparece como uma jovem de beleza ímpar, e que, no momento do filme, estava jogado em um canto do quarto, servindo como esconderijo para os gatos fazerem cocô e xixi.

Do lado de fora da mansão, o abandono não é menos pronunciado. Composta por grandes jardins e um velho casarão, a mansão estava tomada por lixo, detritos, gatos pestilentos, guaxinis e pulgas. Isoladas de tudo e de quase todos, eram incapazes de sustentar as necessidades de manutenção do casarão e deixavam a velha mansão ruir à sua volta, enquanto viviam em condições precárias. Os dois lados da moeda da vida dessas duas personagens, no sentido mais amplo da palavra, convivem no mesmo cômodo: ao mesmo tempo em que vemos a deteriorização generalizada em que as duas se meteram, testemunhamos um esforço consciente de recriar uma certa aura de glamour sobre si mesmas. Essa contraposição entre esse senso de estilo anacrônico e o evidente esquecimento em que se tornou Grey Gardens gera o verdadeiro drama do filme e torna chocante a situação das Bouvier.

Depois do sucesso de Gimme Shelter, documentário que registrou a passagem da banda inglesa Rolling Stones pelo Estados Unidos anos antes, os irmãos Maisles conseguiram com Grey Gardens semelhante aclamação crítica universal, por expôr não só a estranha e dramática existência das Bouvier, mas a própria natureza dos documentários - dentro do estilo cine-verdade. Mas, por outro lado, o filme gerou uma polêmica helênica: a exposição das personagens reais foi vista como ato de desrespeito pelos críticos mais moralistas. Além disso, acusaram os diretores de exibir as mulheres sem os retoques de beleza necessários e imprescindíveis à qualquer beldade que aparecesse na grande tela naquela época.

Numa das cenas finais, Little Edie tem uma longa discussão com a mãe, finalmente confrontando as bases da relação, o que acarretou na malfadada existência de Grey Gardens. Enquanto Little Edie responsabiliza a mãe por tê-la obrigado a ficar na casa e afastado dela todos os pretendentes que teve quando jovem, ela olha para o lado e a câmera corta para um quadro na parede, com a imagem de Little Edie ainda adolescente, bela e com um futuro brilhante. Ao voltar para a envelhecida e ressentida senhora Edie, sempre coberta por véus que escondem sua falta de cabelo, o espectador não pode resistir a associar inconscientemente a cena a uma ideia geral de perda. Perda da juventude, da beleza, de um universo de possibilidades. Esta é apenas mais uma das cenas de compadecimento por uma consciência frágil, débil, perdida, manipulável, carente... intrerpesa com uma mãe igualmente frágil, débil, perdida, manipulável, carente e... intrerpesa. Este é um caso inesquecível de duas mulheres que nasceram para uma vida em comum, longe de quase tudo e quase todos, até que a interprisão as separe.

4 comentários:

  1. Realmente o filme é digno de ser assistido e comentado. Uma realidade absurda em se tratando da alta sociedade, mas que muitas vezes pode acontecer. Nada destitui a filha de viver uma ilusão e torná-la de alguma forma uma realidade, por meio da decadência, do materialismo existente (apêgo), do deslumbramento. Muito bem retratado o sonho que muitas vezes fora esterilizado pela mãe em relação à filha. Eu diria que fora uma relação doentia e soberba que enfim, deu certo! Com uma lucidez momentânea da mãe no final do filme em admitir o erro que cometera à filha quando ela tenta persuardi-la de não ir à estréia do filme em que os irmãos Maisles havia feito sobre a vida dessas duas mulheres.

    ResponderExcluir
  2. Tenho o documentário mas não encontro a legenda! Podem me ajudar, por favor??? Obrigado: vitortertuliano@yahoo.com.br

    ResponderExcluir
  3. Descobri esse filme ontem e estou fascinado. Otima critica.

    ResponderExcluir