Bem-vindos ao Cinema & Consciência, um novo espaço para a difusão e a discussão do cinema brasileiro e internacional. Vamos falar de filmes ou documentários, discutir ética e estética do cinema, com enfoque nas pessoas, nos temas e nos fatos. Os comentários dos visitantes serão sempre bem-vindos.

Todos os textos neste blog são de autoria de Mário Luna, salvo aqueles em que a fonte for mencionada.
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sábado, 30 de janeiro de 2010

Uma Lição de Respeito

Onde Fica a Casa do Meu Amigo ? do diretor iraniano Abbas Kiarostami é um desses filmes em que percebemos o quanto o respeito ao outro, cumprido às últimas consequências, é um ato isolado, notável e raro de se ver hoje em dia. Falamos de compromisso, responsabilidade, assistência, civilidade. Mas tudo soa utópico quando vemos na realidade a prática desses valores. O filme de Kiarostami mostra, entretanto, que, ao se tentar exercer a humanidade, ganhamos muito mais com as experiências que vivemos no caminho trilhado com essa intencionalidade do que propriamente no ato humanitário em si.

O que pode nos motivar o exercício do respeito certamente tem origem no grau de compromisso e responsabilidade para com o outro que utilizamos na prática. A evolução da consciência passa não apenas pela compreensão do que é importante para o outro, mas sobretudo pela conscientização do nosso papel nesse processo. No filme, Ahmed leva por engano o caderno do amigo para casa, impossibilitando-o a fazer a tarefa pedida pelo professor. Como o amigo já havia sido advertido pelo professor que, caso não trouxesse a tarefa pronta no dia seguinte, seria expulso da sala, Ahmed se viu com a incumbência de levar o caderno para o amigo. Uma tarefa simples se ele soubesse onde o amigo morava.

O pouco que Ahmed sabe sobre o amigo não vai facilitar nem um pouco a tarefa de lhe entregar o caderno. Contra a vontade da mãe, o menino parte para a cidade vizinha à procura de Nematzadeh, seu colega de classe. Então, é possível perceber, até com certa surpresa, e muitas vezes, reconheço, com um certo encanto, como a boa intenção é redentora e, sempre, recompensadora. Enquanto procurava o endereço do amigo, vemos que pouco importa a procura em si, e sim os passos que precisamos dar numa assistência sincera e o aprendizado que o ato envolve, independente da chegada.

Quando Ahmed chega na cidade vizinha, onde supostamente Nematzadeh mora, a camera de Kiarostami faz lembrar os enquadramentos de Charles Shultz, onde apenas o menino é importante na tela. Isso fica claro quando os três primeiros encontros nas ruas. O primeiro é com um velhinho que carrega palha, mas cujo rosto não vemos. A impressão é que o menino está conversando com um monte de palha ambulante. Em seguida, uma toalha cai da varanda de uma das casas. Uma voz de mulher adulta pede para que o menino a jogue de volta. Por fim, ele encontra um outro colega de turma, que tampouco sabe onde Nematzadeh mora, mas que, aqui, sabemos porque o menino reclama na sala de aula de dores nas costas: ele ajuda o pai no trabalho, carregando pesadas latas de leite. O que nos remete a temas recorrentes no Brasil sobre crianças trabalhando numa época da vida em que deveriam se preocupar exclusivamente com os estudos.

Numa de suas idas e vindas à cidade vizinha à procura do amigo, Ahmed encontra o avô. No segundo diálogo que o menino tem com um adulto da família na sua peregrinação assistencial, o primeiro foi com a sua mãe em casa antes de sair para entregar o caderno, o diretor Kiarostami mostra uma significativa diferença de valores. O idoso, como a sua mãe anteriormente, tenta tirá-lo do seu caminho minizando a tarefa do neto devolver o caderno para o amigo, sob o pretexto de que o menino fosse buscar os seus cigarros em casa. Enquanto Ahmed vai buscar os cigarros em casa, a camera se fixa no avô. Então, vemos que, para o idoso, o ato de respeitar passa pelo uso da violência como forma de intimidação aos membros menores da família. Numa de suas falas, ele diz que seu pai lhe batia a cada quinze dias, não porque tinha um bom motivo para isso, mas porque tinha que manter a imposição do respeito pelo temor.

Na mesma sequência, Ahmed não se faz ouvido pelos adultos. Ele procura ajuda com um vendedor de portas que não lhe ouve, mas que ao saber se tratar do pai de Nematzadeh, segue o homem de volta à cidade vizinha. Lá, infelizmente, descobre que o filho dele também se chamava Nematzadeh, mas não era o amigo de sala de Ahmed, e tampouco o conhecia em Koker. Certamente Kiarostami, que não disperdiça sigmas em seus filmes, nos mostra um caminho em S no morro que liga as duas cidades - S de Sísifo, que, na mitologia grega, foi condenado a carregar uma pedra ao alto de um morro para vê-la rolar de volta à base por toda uma eternidade. A procura pelo amigo era, seguramente, um trabalho de Sícifo para aquele menino !

O último encontro que Ahmed tem no povoado vizinho está cheio de significados. Em suas várias viagens à Koker, já perto do pôr do sol, ele encontra o velhinho marceneiro. No filme, o personagem representa a sabedoria, a cultura e a tradição. Caminhando com o menino, ele mostra orgulhoso a cidade como uma de suas obras. Sábio, ele tem uma fala mansa e caminha lentamente, desfrutando de cada palmo da localidade, enquanto o menino caminha rápido, sempre com pressa e quase sem olhar em volta, tentanto vencer o tempo e demonstrando impaciência com o lento. Na medida em que o velho sábio sabe por onde anda com seus passos lentos, o menino está perdido e sem direção em seus passos rápidos. Logo em seguida, ele se desgarra do velho, mas esbarra no medo dos latidos de um cão e pára. É quando o velho o alcança e o reconforta. Sublime interpretação do diretor para a sabedoria dos experientes diante da impetuosidade dos jovens que ainda têm muito o que aprender com a vida.

Terminando o dia, Ahmed está de volta à sua casa. Derrotado por não ter encontrado a casa do amigo, ele sofre, recusa a comida que a mãe lhe serve, está pensativo, triste e isolado em seu universo de frustração. Mas, ao invés de, apesar de exausto, ir dormir, vai fazer a sua tarefa. Abre os dois cadernos e atravessa a noite fazendo os exercícios em duplicidade. Na manhã seguinte na sala de aula, o colega Nematzadeh já se sente perdido por não ter feito os exercícios, quando o professor começa a revista nos cadernos dos seus alunos. Quando o professor está por revistar o caderno de Nematzadeh, Ahmed chega atrasado na sala de aula. Ele se senta junto ao colega e, discretamente, lhe entrega o caderno. É quando o professor se aproxima e faz a revista. Ao abrir o caderno de Nematzadeh vê que todos os exercícios haviam sido feitos e que, na última página, Ahmed havia colado uma flor, que ele colhera no caminho para Koker, símbolo de suas viagens para encontrar o amigo no dia anterior.

Onde Fica a Casa do Meu Amigo ? deixa várias reflexões como tarefa de casa para o espectador. A mais significativa delas, entretanto, creio que seja sobre os valores da sociedade. No filme, o menino encontra muitos adultos incapazes de entender suas necessidades imediatas e lhe mostrar o caminho certo para alcançar aquilo que ele precisa. Além disso, fica claro que todo aprendizado importante ocorre fora das instâncias da educação formal e familiar. Vemos um professor que aterroriza seus alunos com ameaças e humilhação, uma mãe e um avô que despreza a atitude do menino de cumprir com sua responsabilidade para com o colega de turma, um pai ausente, e tudo que os adultos fazem é deseducar, passar ensinamentos totalmente descontextuados da realidade da criança, que, por sua vez, de forma perseverante, nos mostra que a vida não deve ser uma imitação engessada de uma tradição retrógada, mas uma experiência individual que jamais deve ser levada de qualquer jeito.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Série Tributo: Volume 1 - Andrei Tarkovsky

Tributo ao premiado e aclamado diretor russo, Andrei Tarkovsky (1932-1985), que se tornou uma lenda do cinema após a realização de obras primas como Solaris, O Sacrifício, O Espelho, Andrei Rublev, Stalker, Nosthalgia e A Infância de Ivan.

Ele dirigiu os primeiros cinco filmes de sua filmografia de sete filmes na antiga União Soviética. Os dois outros foram feitos na Itália e Suécia. Tarkovsky se caracterizou por fazer filmes com grande intensidade dramática, personagens misteriosos, temas metafísicos, histórias carregadas de espiritualidade e reflexões filosóficas. Sua técnica muito particular explorava longas tomadas, movimentos lentos de camera e quadros expostos numa fotografia muitas vezes surreal e pictórica. Nada em seus filmes parece convencional e a estrutura dos seus plots ficou conhecida por apresentar uma cinematografia memorável.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Série Entrevistas - Volume 2: Jean-Luc Godard


Entrevista realizada com Jean-Luc Godard para televisão francesa.


domingo, 24 de janeiro de 2010

Aniversário de 1 Ano do Blog Cinema & Consciência

O Blog Cinema & Consciência fez um ano de existência no último mês de dezembro de 2009. Em tempo, gostaria de agradecer a todos os seguidores e também aos visitantes por manter o fluxo de informação sempre em movimento. Muito obrigado a todos !

Pais Desequilibrados, Filhos Condenados


Alienação parental é o ato do genitor ou genitora, após a separação conjugal, afastar os filhos do ex-companheiro (a), com a intenção de desgastar a imagem e desacreditá-lo (la) moralmente diante dos filhos. Os interesses são inúmeros, como limitar o contato da criança não apenas com o genitor(a) alienado, mas também com toda a família dele ou dela, fazer a criança pensar que foi abandonada e, portanto, rejeitada, pressionar a criança para escolher entre um genitor e outro, criar a impressão de que o genitor(a) alienado é perigoso, evitar mencionar o nome do genitor(a) alienado dentro de casa ou qualquer comentário relativo a ele ou ela, desvalorizar hábitos, costumes, idéias, lembranças, gestos, amigos e parentes do genitor (a) alienado, entre muitos outros.

A estratégia empreendida pelo pai ou mãe alienador não é só maldosa e desonesta para com o ex-companheiro(a) e cruel para com os filhos, pelo alto grau de egoísmo na razão do alienador, como também extremamente ardilosa, por utilizar técnicas e táticas complexas de destruição da imagem e afastamento dos filhos que, obviamente, são os maiores prejudicados. Mas o pai ou mãe alienador está imbuído demais em investir em punições a ex-companheiros(as) e a pôr em práticas seus planos diabólicos, movido por satisfações malévolas e arroubos de um ego estragado e uma mente emocionalmente desequilibrada, para enxergar a verdade além de si mesmos e entender a separação de uma maneira menos revanchista. Para resgatar o que ele ou ela entende equivocadamente por amor próprio e dignidade, ele ou ela não hesitará em usar os filhos como escudo.

A alienação parental é um ato de covardia que desafia até a determinação da justiça, que dá ao ex-companheiro(a) o direito de ver os filhos depois da separação. Para a criança, a visita do pai ou da mãe pode lhe causar alguns dissabores após o encontro, como punições veladas caso a criança expresse satisfação em ver o pai ou a mãe na visita, conflitos com o pai ou mãe alienador, interrogatórios após as visitas, terrorismos subliminares, culpas caso a criança tenha um bom relacionamento com o pai ou a mãe alienado. E os efeitos de uma mente doentia não ficam por aí. Na convivência diária, é comum o pai ou a mãe alienador investir na reeducação parental dos filhos muitas vezes obrigando-os a chamar de pai ou mãe o padrasto e a madrasta, além de forçá-los a usar o primeiro nome ao se referir ao pai ou mãe biológico.

O contato da criança com o pai ou mãe alienado se torna um tormento. Telefonemas, cartas, e-mails, ou qualquer outro tipo de correspondência se torna insistentemente fiscalizado e uma verdadeira administração de ditadura se instala na casa do alienador. As visitas são monitoradas, rigidamente controladas e, em alguns casos, maldosamente abreviadas. A fantasia criada com o intuito de destruir a imagem do pai ou mãe alienado é tão forte e desonesta que muitas vezes, já grandes, quando os filhos descobrem a verdade sobre seus pais ou mães biológicos, prejudicados pela alienação, é comum haver rompimentos de relação com o pai ou mãe alienador, tal é a revolta sentida pelos filhos, gerada por anos de enganação e sofrimento.

O documentário A Morte Inventada é um belo trabalho do diretor Alan Minas, que revela o drama de pais e filhos que tiveram seus elos rompidos por uma separação conjugal mal conduzida. Os pais testemunham seus sentimentos diante da distância por anos de afastamento de seus filhos. Os filhos que na infância sofreram com esse tipo de abuso revelam de forma dramática como a alienação parental interferiu desastrosamente na sua vida, na sua formação como pessoa e em seus relacionamentos sociais, além de como a prática afetou a relação com o genitor ou genitora alienado. Vingança, revanchismo, infantilismo, baixa auto-estima, problemas de ego, entre outros distúrbios, são as causas mais comuns da alienação parental.

Segundo o psiquiatra infantil americano, Richard Gardner, a alienação parental revela-se como um situação na qual o genitor ou genitora alienador tenta afastar os filhos dos ex-companheiros por motivos egóicos e através de informações distorcidas, normalmente extrapolando o limite da realidade ao ponto de criar acusações severas de abuso sexual a fim de romper de uma vez por todas, apoiados em decisões judiciais, o vínculo dos filhos com o pai ou a mãe alienado. O alienador usa os filhos para atingir o ex-companheiro(a) como punição pela separação. Os casos de alienação crescem quando a separação ocorre pela escolha de um dos conjuges de casar-se com outra pessoa ou quando a separação ocorre por infidelidade. As crianças vítimas da alienação parental carregam para sempre os sinais desse tipo de violência, podendo desenvolver, na fase adulta, distúrbios psicossociais severos.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Um Mar de Maturidade

O processo da maturidade pode ser explicado através de várias asserções, mas não seria exagero afirmar que os efeitos da verdadeira maturidade implicam o uso predominante da razão e do senso crítico, a maneira com que controlamos as emoções e o grau de inteligência evolutiva que aplicamos na prática. O processo da maturidade é relativo a cada ser humano e se desenvolve de forma complexa, de acordo com a percepção que temos do meio em que vivemos e através do entendimento das nossas responsabilidades individuais, o que também envolve o conhecimento das nossas capacidades, fraquezas e limites.

No livro Humano Demasiadamente Humano, Nietzsche afirma, "quem quiser seriamente (alcançar a maturidade) perderá de mais a mais, sem qualquer constrangimento, a propensão para os erros e vícios; também a irritação e o aborrecimento o acometerão cada vez mais raramente. É que a sua vontade não quer nada mais instantaneamente do que conhecer e o meio para tanto, ou seja, a condição permanente em que ele está mais apto para o conhecimento."

A maturidade humana não está necessariamente condicionada à qualquer questão cronológica - experiência sem consciência de nada serve - e é justamente nesse ponto que o filme da diretora Marion Hänsel, Entre O Inferno e O Profundo Mar Azul, desce suas âncoras para nos mostrar uma bela história de amizade, aprendizado humano e interassistência na prática. Em Diário, Delacroix diz que "a posição em que a idade nos coloca é uma ironia da natureza."

O filme conta a história de Nikos, um homem infeliz, atormentado pelo seu passado, perdido e viciado em ópio, cujo navio está ancorado no porto de Hong Kong à espera de um comprador, e Li, uma garotinha pobre, mendiga, que parece embarcar diariamente em navios estrangeiros atracados à procura de comida, dinheiro e trabalho, o que, por fim, acaba conseguindo no navio de Nikos.

Li tem 10 anos e vive com os avós, num barquinho que circula no porto de Hong Kong, como parece circular outros barcos como aquele, usados como moradias pelo pobres locais. Sobre a família de Li sabemos que o pai abandonou a mulher e os dois filhos pequenos, ficou cego e vive numa espécie de asilo ao ar livre. Ela e o irmão foram então abandonados pela mãe, por ordem de um padrasto que os rejeitava. Nikos não conta muito sua vida, mas o pouco que sabemos é suficiente para sabermos que ele é um homem atormentado por uma relação mal acabada com uma mulher na Bélgica, que lhe escreve cartas nunca respondidas por ele e que, entre outras lamentações sobre o destino que os separou, lhe fala de um filho que ele nunca viu. Fica claro que a vida de Nikos está num barco à deriva, como o navio em que trabalhava e que agora está à venda. Desesperançado e sem brilho, ele sobrevive no navio como um vegetal, cercado de homens igualmente perdidos com o fim das viagens, que gastam o tempo em jogatinas, bebedeira e mulheres.

Num cenário nada reconfortador, a presença de Li e seu irmão pequeno traz um filete de esperança e sorriso para os marinheiros. Além da dupla de crianças, um bichano ainda filhote é resgatado e adotado pelo capitão do navio. Na interpretação do título, a realidade desesperançosa do navio nas primeiras cenas do filme mostra o inferno pessoal em que vivem seus ocupantes naquela última estadia, atenuada aos poucos com a chegada do gatinho e das crianças. Nesse universo triste e terminal, Li vai sobriamente conquistando seu espaço e literalmente limpando o navio e lavando roupas sujas. Na limpeza do lugar, sua amizade com Nikos ganha um nível maior de companheirismo e uma afetividade improvável para um homem em tal imersão de tristeza.

Quando ele a convida para ir à cidade, a história mostra a saída do inferno para algo mais humanamente digno. É quando Li passa a exercer, com uma naturalidade inviolável e uma maturidade assombrosa, sua capacidade assistencial. A menina o leva a conhecer o local em que viveu, visita a mãe na fábrica em que trabalha como escrava e assoitada pelo marido e depois o apresenta o pai no asilo. A maneira com que Li frequenta seu passado, assiste seus pais e revisita um tempo que muitos preferiam esquecer, é uma lição de vida e esperança para Nikos, que, em um dos diálogos mais marcantes do filme, diz à menina, "você ajuda sua mãe, ajuda seu pai, ajuda seu irmão e sua família, e ainda está me ajudando ?" A menina olha para ele com muita tranquilidade e responde, "a vida não pode se diferente."

O roteiro de Entre o Inferno e O Profundo Mar Azul é uma adaptação de um conto chamado "Li", do escritor e poeta grego Nikos Kavvadias (1910-1975). O filme é sublime, com a intenção de mostrar não apenas que maturidade e idade adulta não necessariamente devem pertencer à mesma pessoa, mas, sobretudo, que, ao tentar enxergar o macro na assistência ao outro, deixamos de compreender o micro, sem o qual o macro perde todo o sentido. O problema não reside, entretanto, na nossa busca incessante pelo ideal, posto que está é uma das inquietudes humanas necessárias, mas na direção em que olhamos para encontrar esse ideal. Ele não estará no que é concreto.

O filme infelizmente não ganhou um lançamento em DVD, apesar de ter sido lançado em 1995, e está disponível apenas em fitas VHS.




Casting No Shadow (1991) - Wim Mertens (da trilha sonora do filme Entre o Inferno e O Profundo Mar Azul)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A Indústria do Medo

Assistindo O Mistério da Duas Irmãs ontem, o que aproveito para recomendar o filme, que é uma mistura muito bem dosada de suspense, drama psicológico-psiquiátrico e ghost movie, me dei conta de que os filmes do gênero têm a clara intenção de assustar o espectador. Tanto em cenas as mais banais quanto naquelas em pontos-chave da película, o medo pontua o gráfico dramático como se nos desse a ordem 'agora é hora de pular da cadeira.' Isso é irritante e em muitas partes do filme, desnecessário. Segundo normas supostamente estabelecidas nos roteiros, é padrão seduzir o espectador para um susto num terço da fita, outro susto num segundo terço e pisar no acelerador dos sustos no último quarto de tempo do filme, criando então um final chocante. Para dar um bom susto é preciso criar um ambiente prévio de aparente tranquilidade, relaxando o espectador antes de fazê-lo pular da cadeira. Quanto mais tranquila for a cena que leva ao susto, maior será o pulo da cadeira. Veja esse filme de uma propaganda de carro, por exemplo.



Entenderam ? Esse é o segredo de um bom susto. O medo ajuda o homem a evitar o perigo. Ele aumenta a eficiência do organismo. Logo que o cérebro percebe uma ameaça, o circuto do medo é acionado. Formado por núcleos cerebrais como a amígdala e o hipocampo, ele libera neuro-hormônios e neurotransmissores em defesa do organismo. Dopamina, endorfina e adrenalina caminham para o sangue. No alívio, quando o perigo é detectado e vencido, o cérebro desativa sua defesa e suspende a produção das substâncias. A alta do dopamina deixa deixa os sentidos alertas, proporciona ao mesmo tempo sensação de prazer e calma. Os intervalos de sustos nos filmes obedecem aos fluxos de produção da dopamina no cérebro. Quando em alta, o efeito é melhor e até vicia, posto que sempre buscamos esse tipo de prazer. Como acontece com os praticantes de esportes radicais. As atividades que geram maior perigo são as que produzem maior prazer - essa conclusão médica deve ser seguida, no entanto, da seguinte observação: maior prazer para aqueles que usam sua dopamina com uma certa tendência suicida.

Mesmo tendo vencido seus medos mais primitivos, como o de ser devorado por animais predadores, entre outros ao longo da história, o ser humano possui uma imaginação infinita para criar novos pavores de acordo com o pensamento atualizado de uma geração. Criou-se o medo dos bárbaros, das bruxas, dos monstros, dos vampiros, das pestes, dos marcianos, dos comunistas, dos ataques nucleares, das guerras, do George Bush, do Osama bin Laden etc. Cultura, sociedade e educação são os pilares na determinação dos medos do povo. O medo controlado na tela, com a certeza de que tudo aquilo não é real, e que a realidade tal como nós conhecemos estará nos esperando ao final da sessão, faz com que o público se permita algumas horas de pavor e sinta prazer nisso. O ser humano busca por instintos emoções fortes, seja em filmes de terror ou aventura ou em esportes radicais, de modo que podemos certamente asseverar que, um bom filme de terror é o mesmo que saltar de asa delta da Pedra da Gávea ou se lançar em queda numa Montanha Russa.

Essa predileção pelo prazer no risco ou no lado angustiante do terror tem explicação no lado cultural, psicológico e social do medo, um componente essencial na vida humana. O filósofo Aristóteles resolveu definir o efeito esperado da tragédia quando disse que "devia provocar no público a catarse, por meio da piedade e do terror." Só assim o público conseguiria purgar seus conflitos interiores e se arrepender dos seus pecados. As cenas horripilantes da mitologia grega, como a de Prometeu, Édipo, Sícifo, entre outros, tinham a intenção de fazer o povo depurar seus próprios sentimentos. E, hoje, o principal dispositivo da arte é fazer o público viver experiências que não seriam possíveis no mundo real. Filmes de monstros e fantasmas, então, são os melhores para deixar vir à superfície o lado obscuro tanto do ser humano, quanto da realidade em que vive. Bem, isso é de certa forma lamentável, porque, aqui, a arte pouco pode fazer para evitar a realidade fora das salas de cinema.

A concepção artística da realidade, retratada nas telas, cria uma suposta imagem quimérica para o mundo sobrenatural, dando a entender que a paranormalidade é uma invenção só vista na indústria cinematográfica. Desde a infância, somos educados a temer o desconhecido, o sobrenatural, o paranormal, as criaturas do além, fantasmas e espíritos, tendo a religião como base na criação deste medo. A convivência pacífica com o dom da clarividência é simplesmente impensável. A comunicação multidimensional pode ter levado muitos ao manicômio. A paranormalidade inata, natural e sadia é uma coisa para se guardar a sete chaves e temer sobre todas as outras coisas. Ironicamente não fomos feito para saber quem de fato somos nem para compreender completamente o espaço em que vivemos. O restringimento físico é sábio, posto que respeita nossa condição anímica de limitações e ignorâncias.

Com a maturidade, podemos ir, pouco a pouco, nos libertando dos grilhões das lendas urbanas e dos mitos religiosos seculares, os quais fundamentaram as bases do sentir medo de espíritos. Embora não seja uma tarefa nada fácil, quando estivermos preparados para enxergar a vida através de uma lente grande angular, veremos o quanto deixamos de evoluir por temer a nós mesmos, numa outra dimensão.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Apartheid Alienígena

Particularmente não tenho nada contra alienígenas. Muito pelo contrário. Todos os que eu conheci eram superdotados, energeticamente poderosos, educados, assistenciais e queriam sossego para ambos os lados. Vinham em missão de paz e para a melhoria intelectual da raça humana. Não estacionavam naves em campos de trigo, não cegavam militares com luzes incandescentes, não apareciam em Globo Repórter nem em fotos suspeitas como pratos voadores cintilantes, sobrevoando florestas e cidades e assustando populações inteiras de desavisados. Não tinham forma de ácaros humanóides, nem de bactérias disformes. Não expeliam gosmas amarelas, não degulinavam feito moluscos fora d'água e tampouco se plasmavam em monstros aberrantes. Não falavam por códigos indecifráveis, nem emitiam sons metálicos. Claro que esperar ver um deles numa fila de supermercado seria uma alucinação errática. Mas todos aqueles com quem estive são criaturas tão simpáticas e bem intencionadas com quem podemos passar normalmente um bom tempo conversando ao pé da cama ou em qualquer outro local onde haja alguma privacidade. De modo que seria um exagero desejar que fossem todos enviados de volta para o espaço ou isolados em distritos favelados vasculhando lixos, pois, convenhamos, uma nave capaz de cruzar o espaço e estacionar na Terra deve ter lá seu valor e uma inteligência extra-terrestre. Se nos julgamos superiores e ainda não consegumos dominar a lua, esses caras devem ser todos uma versão atualizada do Stephen Hawkins !

Falar de alienígenas com naturalidade é o que há de mais original em Distrito 9, o filme que deixei de ver nos cinemas, mas que agora consegui em DVD - lançado lá fora. No filme, a humanidade esperava por um ataque hostil ou por gigantes avanços tecnológicos, mas nada disso veio. Os alienígenas chegam à Terra como refugiados e se instalam em uma área da África do Sul, o tal Distrito 9, enquanto os humanos decidem o que fazer com eles. A Multi-National United (MNU) é uma empresa contratada para controlar os alienígenas e mantê-los em campos de concentração e deseja receber imensos lucros para fabricar armas que tenham como matéria-prima as defesas naturais dos extraterrestres. Mas a MNU falha na tentativa de fabricação das armas e descobre que, para que elas sejam ativadas, o DNA dos aliens é necessário. A tensão entre humanos e aliens aumenta quando Wikus van der Merwe contrai um misterioso vírus que modifica o DNA dos humanos transformando-os em aliens. O fato acaba impedindo a poderosa MNU de colocar em prática seus planos de exploração sobre as criaturas de outro planeta. Então o homem que se torna o mais procurado do mundo, tem que fugir, mas sem casa e sem amigos, só tem um lugar onde se esconder: o Distrito 9.

O filme oferece alguns pontos de reflexão interessantes. O primeiro é ver como nossa peculiar forma de lidar com as diferenças extrapola os limites do absurdo e fere o conceito de universalismo. Não acredito que tais criaturas seriam fadadas a viver precariamente numa favela no Soweto sulafricano se todos tivesem a forma humanóide americana ou fossem parecidos com a Gisele Bündchen. Segundo é constatar que tudo, em se tratando de intolerância contra minorias, acaba em guerra de nossa parte, já que os alienígenas deixaram bem claro sua missão pacífica. Terceiro toca a questão do preconceito. O movimento popular de reprovação e luta armada para a expulsão de tais elementos intergalácticos mostra como os alienígenas, na verdade, somos nós. Quarto, o filme explora a condição humana de exploração imperialista em busca de lucros e poder, remanescente do tempo das navegações em caravelas. Como não creio que haja uma história inédita a ser contada no cinema, a originalidade de Distrito 9 é o grande diferencial desta produção de 30 milhões de dólares, que se pagou com apenas três dias em cartaz, arrebatando platéias no mundo todo e encantando a crítica.

Com produção assinada por Peter Jackson, famoso pela trilogia de Senhor dos Anéis, o jovem diretor Neill Blomkamp criou um clima de filme-documentário muito eficiente (a velha nova moda no cinema desde que a Bruxa de Blair foi lançado). E é justamente nesse pique de documentário que o filme ganha mais alguns pontos em sua escala de interesse. A produção foi acompanhada ainda por uma pesada campanha publicitária em estilo realista, com cartazes espalhados por cidades americanas, pedindo para denunciar aliens e mantê-los à distância. Muitas das entrevistas mostradas no filme são bem reais e falam de uma África do Sul que vai além da relação com o apartheid. Blomkamp entrevistou sul-africanos pobres de Soweto sobre o que eles achavam dos "illegal aliens", que, em inglês, significa tanto "alienígenas ilegais" como "imigrantes ilegais". Como não sabiam do filme, os entrevistados soltavam o verbo contra os zimbabuanos que passaram a imigrar em massa para a África do Sul nos últimos dez anos, fugidos da ditadura de Robert Mugabe e povoando as favelas do país vizinho. Além dos zimbabuanos, os nigerianos também entraram na dança no Distrito 9 como traficantes religiosos. No filme, eles surgem como selvagens canibais de aliens, embora quem tenha se sentido ofendido sejam os sul-africanos, já que os nigerianos são interpretados por atores locais, que falam dialetos negros sul-africanos.

Ficção científica nunca foi para mim um gênero que merecesse muita atenção. Mas Distrito 9 ganha nessa boa onda de tratar histórias banais de uma forma diferente e original. Assim vimos em Os Outros, Deixe Ela Entrar, A Bruxa de Blair, Borat, September Tapes, Gothic, filmes de genêros os mais variados.