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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Um Mar de Maturidade

O processo da maturidade pode ser explicado através de várias asserções, mas não seria exagero afirmar que os efeitos da verdadeira maturidade implicam o uso predominante da razão e do senso crítico, a maneira com que controlamos as emoções e o grau de inteligência evolutiva que aplicamos na prática. O processo da maturidade é relativo a cada ser humano e se desenvolve de forma complexa, de acordo com a percepção que temos do meio em que vivemos e através do entendimento das nossas responsabilidades individuais, o que também envolve o conhecimento das nossas capacidades, fraquezas e limites.

No livro Humano Demasiadamente Humano, Nietzsche afirma, "quem quiser seriamente (alcançar a maturidade) perderá de mais a mais, sem qualquer constrangimento, a propensão para os erros e vícios; também a irritação e o aborrecimento o acometerão cada vez mais raramente. É que a sua vontade não quer nada mais instantaneamente do que conhecer e o meio para tanto, ou seja, a condição permanente em que ele está mais apto para o conhecimento."

A maturidade humana não está necessariamente condicionada à qualquer questão cronológica - experiência sem consciência de nada serve - e é justamente nesse ponto que o filme da diretora Marion Hänsel, Entre O Inferno e O Profundo Mar Azul, desce suas âncoras para nos mostrar uma bela história de amizade, aprendizado humano e interassistência na prática. Em Diário, Delacroix diz que "a posição em que a idade nos coloca é uma ironia da natureza."

O filme conta a história de Nikos, um homem infeliz, atormentado pelo seu passado, perdido e viciado em ópio, cujo navio está ancorado no porto de Hong Kong à espera de um comprador, e Li, uma garotinha pobre, mendiga, que parece embarcar diariamente em navios estrangeiros atracados à procura de comida, dinheiro e trabalho, o que, por fim, acaba conseguindo no navio de Nikos.

Li tem 10 anos e vive com os avós, num barquinho que circula no porto de Hong Kong, como parece circular outros barcos como aquele, usados como moradias pelo pobres locais. Sobre a família de Li sabemos que o pai abandonou a mulher e os dois filhos pequenos, ficou cego e vive numa espécie de asilo ao ar livre. Ela e o irmão foram então abandonados pela mãe, por ordem de um padrasto que os rejeitava. Nikos não conta muito sua vida, mas o pouco que sabemos é suficiente para sabermos que ele é um homem atormentado por uma relação mal acabada com uma mulher na Bélgica, que lhe escreve cartas nunca respondidas por ele e que, entre outras lamentações sobre o destino que os separou, lhe fala de um filho que ele nunca viu. Fica claro que a vida de Nikos está num barco à deriva, como o navio em que trabalhava e que agora está à venda. Desesperançado e sem brilho, ele sobrevive no navio como um vegetal, cercado de homens igualmente perdidos com o fim das viagens, que gastam o tempo em jogatinas, bebedeira e mulheres.

Num cenário nada reconfortador, a presença de Li e seu irmão pequeno traz um filete de esperança e sorriso para os marinheiros. Além da dupla de crianças, um bichano ainda filhote é resgatado e adotado pelo capitão do navio. Na interpretação do título, a realidade desesperançosa do navio nas primeiras cenas do filme mostra o inferno pessoal em que vivem seus ocupantes naquela última estadia, atenuada aos poucos com a chegada do gatinho e das crianças. Nesse universo triste e terminal, Li vai sobriamente conquistando seu espaço e literalmente limpando o navio e lavando roupas sujas. Na limpeza do lugar, sua amizade com Nikos ganha um nível maior de companheirismo e uma afetividade improvável para um homem em tal imersão de tristeza.

Quando ele a convida para ir à cidade, a história mostra a saída do inferno para algo mais humanamente digno. É quando Li passa a exercer, com uma naturalidade inviolável e uma maturidade assombrosa, sua capacidade assistencial. A menina o leva a conhecer o local em que viveu, visita a mãe na fábrica em que trabalha como escrava e assoitada pelo marido e depois o apresenta o pai no asilo. A maneira com que Li frequenta seu passado, assiste seus pais e revisita um tempo que muitos preferiam esquecer, é uma lição de vida e esperança para Nikos, que, em um dos diálogos mais marcantes do filme, diz à menina, "você ajuda sua mãe, ajuda seu pai, ajuda seu irmão e sua família, e ainda está me ajudando ?" A menina olha para ele com muita tranquilidade e responde, "a vida não pode se diferente."

O roteiro de Entre o Inferno e O Profundo Mar Azul é uma adaptação de um conto chamado "Li", do escritor e poeta grego Nikos Kavvadias (1910-1975). O filme é sublime, com a intenção de mostrar não apenas que maturidade e idade adulta não necessariamente devem pertencer à mesma pessoa, mas, sobretudo, que, ao tentar enxergar o macro na assistência ao outro, deixamos de compreender o micro, sem o qual o macro perde todo o sentido. O problema não reside, entretanto, na nossa busca incessante pelo ideal, posto que está é uma das inquietudes humanas necessárias, mas na direção em que olhamos para encontrar esse ideal. Ele não estará no que é concreto.

O filme infelizmente não ganhou um lançamento em DVD, apesar de ter sido lançado em 1995, e está disponível apenas em fitas VHS.




Casting No Shadow (1991) - Wim Mertens (da trilha sonora do filme Entre o Inferno e O Profundo Mar Azul)

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