Bem-vindos ao Cinema & Consciência, um novo espaço para a difusão e a discussão do cinema brasileiro e internacional. Vamos falar de filmes ou documentários, discutir ética e estética do cinema, com enfoque nas pessoas, nos temas e nos fatos. Os comentários dos visitantes serão sempre bem-vindos.

Todos os textos neste blog são de autoria de Mário Luna, salvo aqueles em que a fonte for mencionada.
Críticas construtivas e sugestões em geral, envie e-mail para este blogger: cinemaconsciencia@gmail.com

"Não acredite em nada que ler ou ouvir neste blog. Reflita. Tenha as suas próprias opiniões e conclusões"





sábado, 30 de janeiro de 2010

Uma Lição de Respeito

Onde Fica a Casa do Meu Amigo ? do diretor iraniano Abbas Kiarostami é um desses filmes em que percebemos o quanto o respeito ao outro, cumprido às últimas consequências, é um ato isolado, notável e raro de se ver hoje em dia. Falamos de compromisso, responsabilidade, assistência, civilidade. Mas tudo soa utópico quando vemos na realidade a prática desses valores. O filme de Kiarostami mostra, entretanto, que, ao se tentar exercer a humanidade, ganhamos muito mais com as experiências que vivemos no caminho trilhado com essa intencionalidade do que propriamente no ato humanitário em si.

O que pode nos motivar o exercício do respeito certamente tem origem no grau de compromisso e responsabilidade para com o outro que utilizamos na prática. A evolução da consciência passa não apenas pela compreensão do que é importante para o outro, mas sobretudo pela conscientização do nosso papel nesse processo. No filme, Ahmed leva por engano o caderno do amigo para casa, impossibilitando-o a fazer a tarefa pedida pelo professor. Como o amigo já havia sido advertido pelo professor que, caso não trouxesse a tarefa pronta no dia seguinte, seria expulso da sala, Ahmed se viu com a incumbência de levar o caderno para o amigo. Uma tarefa simples se ele soubesse onde o amigo morava.

O pouco que Ahmed sabe sobre o amigo não vai facilitar nem um pouco a tarefa de lhe entregar o caderno. Contra a vontade da mãe, o menino parte para a cidade vizinha à procura de Nematzadeh, seu colega de classe. Então, é possível perceber, até com certa surpresa, e muitas vezes, reconheço, com um certo encanto, como a boa intenção é redentora e, sempre, recompensadora. Enquanto procurava o endereço do amigo, vemos que pouco importa a procura em si, e sim os passos que precisamos dar numa assistência sincera e o aprendizado que o ato envolve, independente da chegada.

Quando Ahmed chega na cidade vizinha, onde supostamente Nematzadeh mora, a camera de Kiarostami faz lembrar os enquadramentos de Charles Shultz, onde apenas o menino é importante na tela. Isso fica claro quando os três primeiros encontros nas ruas. O primeiro é com um velhinho que carrega palha, mas cujo rosto não vemos. A impressão é que o menino está conversando com um monte de palha ambulante. Em seguida, uma toalha cai da varanda de uma das casas. Uma voz de mulher adulta pede para que o menino a jogue de volta. Por fim, ele encontra um outro colega de turma, que tampouco sabe onde Nematzadeh mora, mas que, aqui, sabemos porque o menino reclama na sala de aula de dores nas costas: ele ajuda o pai no trabalho, carregando pesadas latas de leite. O que nos remete a temas recorrentes no Brasil sobre crianças trabalhando numa época da vida em que deveriam se preocupar exclusivamente com os estudos.

Numa de suas idas e vindas à cidade vizinha à procura do amigo, Ahmed encontra o avô. No segundo diálogo que o menino tem com um adulto da família na sua peregrinação assistencial, o primeiro foi com a sua mãe em casa antes de sair para entregar o caderno, o diretor Kiarostami mostra uma significativa diferença de valores. O idoso, como a sua mãe anteriormente, tenta tirá-lo do seu caminho minizando a tarefa do neto devolver o caderno para o amigo, sob o pretexto de que o menino fosse buscar os seus cigarros em casa. Enquanto Ahmed vai buscar os cigarros em casa, a camera se fixa no avô. Então, vemos que, para o idoso, o ato de respeitar passa pelo uso da violência como forma de intimidação aos membros menores da família. Numa de suas falas, ele diz que seu pai lhe batia a cada quinze dias, não porque tinha um bom motivo para isso, mas porque tinha que manter a imposição do respeito pelo temor.

Na mesma sequência, Ahmed não se faz ouvido pelos adultos. Ele procura ajuda com um vendedor de portas que não lhe ouve, mas que ao saber se tratar do pai de Nematzadeh, segue o homem de volta à cidade vizinha. Lá, infelizmente, descobre que o filho dele também se chamava Nematzadeh, mas não era o amigo de sala de Ahmed, e tampouco o conhecia em Koker. Certamente Kiarostami, que não disperdiça sigmas em seus filmes, nos mostra um caminho em S no morro que liga as duas cidades - S de Sísifo, que, na mitologia grega, foi condenado a carregar uma pedra ao alto de um morro para vê-la rolar de volta à base por toda uma eternidade. A procura pelo amigo era, seguramente, um trabalho de Sícifo para aquele menino !

O último encontro que Ahmed tem no povoado vizinho está cheio de significados. Em suas várias viagens à Koker, já perto do pôr do sol, ele encontra o velhinho marceneiro. No filme, o personagem representa a sabedoria, a cultura e a tradição. Caminhando com o menino, ele mostra orgulhoso a cidade como uma de suas obras. Sábio, ele tem uma fala mansa e caminha lentamente, desfrutando de cada palmo da localidade, enquanto o menino caminha rápido, sempre com pressa e quase sem olhar em volta, tentanto vencer o tempo e demonstrando impaciência com o lento. Na medida em que o velho sábio sabe por onde anda com seus passos lentos, o menino está perdido e sem direção em seus passos rápidos. Logo em seguida, ele se desgarra do velho, mas esbarra no medo dos latidos de um cão e pára. É quando o velho o alcança e o reconforta. Sublime interpretação do diretor para a sabedoria dos experientes diante da impetuosidade dos jovens que ainda têm muito o que aprender com a vida.

Terminando o dia, Ahmed está de volta à sua casa. Derrotado por não ter encontrado a casa do amigo, ele sofre, recusa a comida que a mãe lhe serve, está pensativo, triste e isolado em seu universo de frustração. Mas, ao invés de, apesar de exausto, ir dormir, vai fazer a sua tarefa. Abre os dois cadernos e atravessa a noite fazendo os exercícios em duplicidade. Na manhã seguinte na sala de aula, o colega Nematzadeh já se sente perdido por não ter feito os exercícios, quando o professor começa a revista nos cadernos dos seus alunos. Quando o professor está por revistar o caderno de Nematzadeh, Ahmed chega atrasado na sala de aula. Ele se senta junto ao colega e, discretamente, lhe entrega o caderno. É quando o professor se aproxima e faz a revista. Ao abrir o caderno de Nematzadeh vê que todos os exercícios haviam sido feitos e que, na última página, Ahmed havia colado uma flor, que ele colhera no caminho para Koker, símbolo de suas viagens para encontrar o amigo no dia anterior.

Onde Fica a Casa do Meu Amigo ? deixa várias reflexões como tarefa de casa para o espectador. A mais significativa delas, entretanto, creio que seja sobre os valores da sociedade. No filme, o menino encontra muitos adultos incapazes de entender suas necessidades imediatas e lhe mostrar o caminho certo para alcançar aquilo que ele precisa. Além disso, fica claro que todo aprendizado importante ocorre fora das instâncias da educação formal e familiar. Vemos um professor que aterroriza seus alunos com ameaças e humilhação, uma mãe e um avô que despreza a atitude do menino de cumprir com sua responsabilidade para com o colega de turma, um pai ausente, e tudo que os adultos fazem é deseducar, passar ensinamentos totalmente descontextuados da realidade da criança, que, por sua vez, de forma perseverante, nos mostra que a vida não deve ser uma imitação engessada de uma tradição retrógada, mas uma experiência individual que jamais deve ser levada de qualquer jeito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário