Bem-vindos ao Cinema & Consciência, um novo espaço para a difusão e a discussão do cinema brasileiro e internacional. Vamos falar de filmes ou documentários, discutir ética e estética do cinema, com enfoque nas pessoas, nos temas e nos fatos. Os comentários dos visitantes serão sempre bem-vindos.

Todos os textos neste blog são de autoria de Mário Luna, salvo aqueles em que a fonte for mencionada.
Críticas construtivas e sugestões em geral, envie e-mail para este blogger: cinemaconsciencia@gmail.com

"Não acredite em nada que ler ou ouvir neste blog. Reflita. Tenha as suas próprias opiniões e conclusões"





domingo, 12 de outubro de 2014

NO TOPO DA CONTRACULTURA


Depois de assistir ao filme, John Lennon convenceu o pessoal da Apple a comprar os direitos de exibição de El Topo, de Alejandro Jodorowsky, para passá-lo nos cinemas underground de Nova Iorque. Isso foi suficiente para transformar o filme numa obra cult de grande sucesso e ganhar da crítica a alcunha de "intrigante obra-prima".

A contracultura é um movimento que teve seu auge na década de 1960, trazendo um estilo de mobilização voltado para a contestação social. Jovens inovaram estilos, voltando-se mais para o antisocial aos olhos das famílias mais conservadoras, com um espírito mais libertário. Nessa onda surgiram o movimento hippie, a liberação feminina, o sexo livre, as ondas místicas a partir do budismo, as viagens cibernéticas inspiradas em Aldous Huxley, entre outras extrapolações de comportamento. No cinema, uma verdadeira avalanche de filmes “cabeça” tornaram-se blockbusters nas famosas sessões da meia-noite e nos cines underground. As conversas partiam de Jung, atravessavam todos os famosos psicanalistas e acabavam cumprindo um trajeto vertiginoso passando pela filosofia e as religiões orientais. Criou-se a figura do “bicho-grilo” e do “maluco-beleza”. A piração libertária generalizada era sinônimo de erudição, politização e consciência espiritual na busca por uma transcendência que oferecesse qualquer outra coisa além do mundo que conhecemos.


O diretor, roteirista e ator franco-chileno Alejandro Jodorowsky era um desses malucos-beleza que, em 1970, lançou a sua controvertida obra-prima El Topo, título que, em português, quer dizer A Toupeira, um filme cabeça onde se encontra absolutamente tudo que a contracultura valorizava: simbolismos cifrados, sigmas, metáforas, linguagem subliminar, representações, alegorias, misticismos, surrealismos, bestialidades etc. O caldeirão interpretativo de dar nó em miolos se estende por mais de duas horas de projeção no seu longa bicho-grilo, filmado inteiramente no deserto, o que não poderia ser em outro lugar, pois o deserto desempenhou na imaginação popular dos adeptos do movimento uma espécie de lugar santo de onde a vida começava e lá também terminava, uma ideia até certo ponto respaldada nas viagens da banda The Doors, que no deserto encontrou inspiração para os seus sucessos, fumando maconha, viajando com mescalina e lendo As Portas da Percepção de Huxley. Mas El Topo não é uma droga de filme e tampouco um filme-droga. Pelo contrário, Jodorowsky nos dá uma aula de como interpretar os desmandos da sociedade a partir de um retrato caricato bastante criativo e inspirado.

Esse é um filme para ser visto e analisado a partir de uma visão subjetiva. Qualquer crítica que o apresente deve, primeiramente, esclarecer que a observação dos fatos não ocorreu durante uma viagem de peiote, apesar do roteiro não ajudar muito a sua autodefesa. A questão é a seguinte: no melhor estilo western spaghetti do Sérgio Leone, numa região encrustada no deserto mexicano, surge a figura de um cowboy justiceiro imbuído de derrotar os quatro deuses do lugar (hmmm), o que, leia-se nas entrelinhas, os deuses que protegem toda a humanidade. Sua primeira batalha é com um coronel manipulador e sanguinário que se divertia dizimando vilarejos. Do grotesco ao sublime, o filme tem de tudo. Mas não tente interpretar todos os sigmas que aparecem na tela, pois chegará um momento em que você estará completamente confuso, dando pausa no filme a cada 15 segundos. Deixe a imaginação cavalgar no lombo de um cavalo enquanto acompanha o ator principal em suas contendas surrealistas, porque chega um momento em que a sua capacidade interpretativa acaba pegando no tranco a coice de esporas.

Apesar de surpreendentemente violento, o gigantismo usado nas cenas acaba transformando o visual numa alegoria cômica. Há passagens seriamente hilárias, como a metamorfose de comportamento de uma cowgirl agressiva para uma lésbica apaixonada, o padre que mostra numa missa que deus faz milagres usando para isso a roleta russa com os fiéis – claro que alguém acaba se estrepando – ou as cenas dos embates do justiceiro, que busca o poder de um deus, dando cabo daqueles que já se diziam deuses. Imagino que Jodorowsky tenha se perguntado se, num mundo com tantos deuses, não haveria uma guerra entre eles para que um conquistasse o comando supremo. Faz sentido. Aqui, o aspirante a deus não confia no próprio poder, mas consegue vencer os quatro imortais no deserto sem maiores problemas, e como em time que tá ganhando não se mexe, até que uma derrota espantosa aconteça para dobrar a arrogância, o pobre descobre que é mortal... pasme... a balas disparadas pela lésbica, que havia se apaixonado pela sua mulher, a ex-amante do coronel. Aqui o filme descamba para uma segunda parte, sem o justiceiro.


Nesta segunda parte, Jodorowsky coloca em prática a justificação do título do seu filme. A toupeira é um animal que vive embaixo da terra, cavando buracos, e quando ela chega à superfície é cega pelo sol. Para representar as toupeiras, Jodorowsky escolheu a classe dos deficientes físicos e há um grande grupo deles vivendo numa caverna, liderados por uma quase drag queen transformada em deusa. Na verdade, essa percepção é meramente visual, com a suspeita de que os deuses são todos andróginos. Contudo, quando uma anã lhe corta o cabelo de Divine e a barba de Maomé, descobrimos se tratar de um homem comum, sem qualquer divindade, mas com um mínimo de sinapses para descobrir uma maneira de cavar túneis e salvar os aleijados da escuridão e do ostracismo. Acompanhado pela anã, com quem acaba se casando no vilarejo onde as ações passam a acontecer, o ex-pseudodeus empreende-se no seu projeto sob a terra e consegue salvar a todos. Infelizmente, depois da euforia da salvação e em plena caminhada para a liberdade, a chusma de renegados acaba abatida a balas na rua principal do vilarejo pela elite do lugar. Aqui ficamos sabendo que o ex-pseudodeus não era ex nem tampouco pseudo, mas um deus de verdade, que, ao ver o fim daqueles por cuja liberdade ele havia lutado tanto, desiste do mundo ateando fogo em si mesmo. No fim, a anã, sua mulher, dá a luz a um filho e deixa o vilarejo na garupa do cavalo de um ex-inimigo do seu marido morto, ou do seu deus sepultado. Bem, enfim... eu preciso tomar uma água gelada.


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

DECÁLOGO: EPISÓDIO V - KRZYSZTOF KIESLOWSKI

A pena de morte é um assunto polêmico em qualquer sociedade. Mas a discussão ainda parece longe de ser conduzida de maneira holística e sensata, isto é, analisando os contextos sociais da criminalidade, e isenta de sentimentalismos revanchistas e justiceiros daqueles que defendem a punição capital. O confronto direto entre a brutalidade de um crime decidido pela lei e outro cometido por um indivíduo coloca a bestialidade humana no centro dessa discussão e revela o modelo arcaico de se punir a violência por meio da própria violência. A questão não envolve apenas um sistema de justiça que valoriza e prefere a retribuição em vez da reabilitação, mas encerra-se numa visão materialista de que a morte física basta para eliminar o mal, expurgar aqueles que seguem na contramão da construção social e representam uma ameaça às sociedades.


Quando atos são julgados pelas suas consequências e desprezamos a razão pela qual eles foram cometidos, invariavelmente, descartamos qualquer possibilidade de entendê-los com o interesse numa solução de tratamento ou, simplesmente, em encontrar uma maneira humanamente exemplar de lidar com o problema. Ou seja, eliminamos o problema sem o discernimento necessário para compreendê-lo diante da incapacidade de resolvê-lo. Em suma, o homem responde a esse problema com a violência porque tanto o justo quanto o injusto, nesse caso, não conhece outra forma de expressão do seu pensamento. O primeiro mata por índole ou fraqueza enquanto o segundo mata com o respaldo da lei.


Baseado na mandamento "não matarás", Kieslowski não parece emitir qualquer julgamento neste quinto episódio de Decálogo ao criar o cenário perturbador de um crime hediondo, cometido por um jovem que, a princípio, parece apenas vagar sem ter o que fazer. Aos poucos sabemos que ele, na verdade, está ocupado em fomentar alguma forma de expressão para as suas angústias interiores. Após o crime, conhecemos a sua história, percebemos as suas fraquezas, a sua incompetência para lidar com as suas tristezas e, sobretudo, a razão da sua transformação pessoal, de um jovem pacato e tranquilo do interior para o criminoso que caminha para a morte. Nesse ponto, Kieslowski levanta a questão do ser humano no centro do problema e ao fazer crescer o lado humano constrói uma realidade na qual a humanidade padece no esquecimento do seu lado prático.

Decálogo V não nos coloca diante apenas da questão da pena de morte, mas além dela, no centro da questão das penas da vida, quando o verbo ainda está muito distante dos valores fundamentais para uma sociedade realmente sadia na prática, quando a religião não basta para entender o ser humano e suas falhas e os princípios, sejam eles quais forem, ainda se curvam diante das emoções em detrimento da razão.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

DECÁLOGO: EPISÓDIO IV – KRZYSZTOF KIESLOWSKI

A tônica que permeia todos os episódios de Decálogo é a confrontação da natureza humana com os 10 conhecidos Mandamentos da Lei de Deus, divulgada ao povo egípcio por Moisés. Para isso, Kieslowski abre mão de um julgamento moralista religioso para mostrar, simplesmente, que entre a teoria e a prática há uma longa estrada repleta de atalhos “pecaminosos”, uma vez que o ser humano em sua natureza é um “pecador”. Para entender melhor essa condição num escopo que transcenda os limites da religião, o posicionamento narrativo se isenta do verbo para mostrar o experimento e suas evidências, identificando no cotidiano a inevitabilidade da conduta incoerente, dos deslizes morais e das falhas de valores e princípios comprometidos com a necessidade de expressão do desejo humano. A automoralidade de não se permitir falhar está tão dissociável e distante de um modelo de comportamento real quanto está a loucura da sanidade, sendo muito mais sensato a aceitação dos erros a fim de corrigi-los do que a pretensão de mantê-los toda uma vida sob a égide da mentira. Esse sistema de autodefesa do ego, mitigado por um poder inalcançável, torna o homem distante de si mesmo e enfraquecido para um autoenfrentamento. Nesse ponto, mais especificamente, Kieslowski nos apresenta o seu quarto episódio.

Baseado no mandamento “honra teu pai e tua mãe para que teus dias se prolonguem sobre a Terra”, o Episódio IV conta a estória de um homem viúvo, Michael, que vive sozinho com a sua filha única, Anka. Desde as primeiras cenas notamos que entre os dois há perguntas não respondidas, pormenores de uma relação que crescem de importância quando uma carta lacrada é encontrada pela filha. No envelope está escrito com a letra da mãe falecida “abrir apenas depois da minha morte”. Nada mais tentador do que uma ordem escrita dessa natureza. Mas Anka resiste diante da carta jamais aberta. O pai sai em viagem de negócios e ela passa os próximos dias com a carta na mão num embate pessoal entre abri-la ou não. A pergunta “o que será que está escrito aqui?” parece saltar da tela através dos pensamentos de Anka. A relação que ela tem com o pai ganha uma luz no final do túnel, quando Michael retorna de viagem e ela lhe revela ainda no aeroporto que sabe da existência da carta e do seu conteúdo: Michael não é o pai de Anka. O primeiros ajustes dos não-ditos são feitos diante de uma foto da mãe quando jovem entre dois rapazes – um deles pode ser o pai de Anka. Aqui, Kieslowski abre um pouco mais o diafragma da sua lente para mostrar que Anka reserva pelo pai um desejo incestuoso contido, secretamente também mantido por Michael. As sutilezas de um roteiro escrito com maestria não precisam de meias palavras para deixar claro nesse ponto da estória a cumplicidade de sentimentos que ambos nutrem um pelo outro – olhares, gestos, comportamentos entre Michael e Anka revelam muito mais do que qualquer texto. O Complexo de Édipo torna-se então explícito embora até aqui tratado entre linhas.


Kieslowski tratou de criar Anka como uma estudante de artes dramáticas para que ela representasse na vida real as distorções de comportamento que adotamos quando assumimos personagens. Ela é uma atriz em todos os sentidos, quando resolve atuar como mulher de Michael. Contudo, através dessa representação, tanto pai quanto filha atende uma falsa postura social e familiar diante do desejo carnal que os atormenta. Esses universos misteriosos são enfim descortinados. O desfecho da estória é surpreendente, levando a cabo a manutenção da mentira como recurso de fuga de uma realidade oposta à outra muito diferente, idealizada segundo desejos que conseguem vencer a barreira de um dilema moral. Não sabemos, na verdade, no que se tornará a relação entre Michael e Anka, mas para um bom entendedor uma boa trilha sonora final basta.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

ECTOPLASMA - O FILME

Em março de 2012, eu lançava o meu primeiro documentário de longa metragem sobre ectoplasmia, baseado numa entrevista do professor e pesquisador de Conscienciologia e Projeciologia, Fred Ganem. A ideia era cinematografar a entrevista concedida ao programa Ciência & Consciência do Ton Martins, exibida no canal da TV Complexis, pelo seu importante conteúdo. Por ectoplasmia entendemos o processo de exteriorização do ectoplasma, substância fluídica, de aparência diáfana, sutil, que flui do corpo de um médium apto a produzir fenômenos físicos, principalmente a materialização. A ectoplasmia é usada em cirurgias espirituais, dada a consistência física da energia ectoplásmica. O documentário traz uma gama bastante robusta de informação a respeito do ectoplasma: os primeiros experimentos, os maiores pesquisadores, as possibilidades na utilização desta energia, o seu uso prático etc. Lanço aqui a versão em português do filme na íntegra.


terça-feira, 23 de setembro de 2014

DECÁLOGO: EPISÓDIO III - KRZYSZTOF KIESLOWSKI

“Lembra-te do dia do sábado para santificá-lo” é o mandamento tratado no terceiro episódio de Decálogo, colocado em prática pelo povo hebreu desde o reinado de Ciro II (537 a.c.). Mas tendo Cristo ressuscitado num domingo, o primeiro dia da semana passou a ser o Dominus, Dies Dominica. Kieslowski optou por centralizar a sua trama num viés deste mandamento, “guardarás domingos e festas sagradas”. A sua personagem Ewa é uma mulher em crise, angustiada e alucinada pela solidão e pelo homem que ama. Na noite de Natal, ela vai à casa do seu amante, Janusz, pedir ajuda para procurar o seu marido desaparecido. Janusz deixa a família para cair no jogo amoroso de Ewa. Aqui não há mais o rapport criado por Kieslowski para uma possível ligação com os seus personagens centrais, como ocorreu nas duas primeiras tramas. Ewa é fria a calculista e pouco sensibiliza, justamente porque parece maquiavélica ao calcular os seus atos, desesperados pela sua solidão e falta de amor próprio. O cenário fortalece essa impressão – a maioria das cenas foi realizada durante a madrugada do dia 25 de dezembro, numa Varsóvia coberta de neve, desabitada e gélida, onde apenas os carros dos personagens e uma viatura da Polícia trafegam no deserto urbano, um recurso poderoso para enfatizar a solidão.

Os sigmas, uma especialidade de Kieslowski, ganham vida através dos riscos nos quais os personagens se colocam ao dirigir em alta velocidade e desafiando o perigo, na medida em que o drama avança e os diálogos aprofundam a condição do amor impossível e do casal incompleto. Assim como em suas vidas, eles buscam ao volante algum tipo de acidente que mude o rumo dos acontecimentos, porém, em mais um sigma inteligente, numa mistura de ímpeto, loucura e medo, os elementos emocionais de toda relação dúbia, o instinto de sobrevivência prevalece e o casal sai ileso. A noite avança, enquanto eles buscam pelo marido desaparecido de Ewa e os pormenores da relação vêm à tona. Janusz é um homem dividido entre duas mulheres na mesma medida em que Ewa sabe do seu poder sobre ele e age como uma mulher carente e vampira da sua presença. Ela não mede esforços e imaginação para tirá-lo da família naquela noite de festa sagrada, onde o sagrado perde espaço para o mundano no universo do casal.



Aos poucos, o drama começa a descortinar a realidade do triângulo amoroso. Ewa havia criado o desaparecimento do marido, que, na verdade, havia lhe abandonado. No outro extremo do triângulo, Janusz percebe a trama da amante e se deixa enganar por ela, não por uma dependência afetiva ou amorosa, mas por outra puramente sexual, um elemento que o diferencia, pragmaticamente, nessa atração que não chega a ser fatal. Na última ponta do triângulo há ainda a mulher de Janusz, que encontra o marido quando ele retorna pela manhã e sua fala ao encontrá-lo deixa claro que ela está ciente da relação extra conjugal do marido. É exatamente quando a estória revela os seus mistérios que vemos como as relações humanas são, em número assustador, primárias e afetivamente patológicas. Partimos desde a aceitação e do subjulgo da esposa até a audácia e coragem de desespero da amante, ambas resignadas em suas condições, passando pela zona de conforto do marido que usufrui, egocentricamente, das carências afetivas das suas mulheres, o que não deixa de ser um retrato fiel dos papéis que não raramente ocorre na vida real.

domingo, 21 de setembro de 2014

DECÁLOGO: EPISÓDIO II - KRZYSZTOF KIESLOWSKI

A vida e a morte são outra vez os temas centrais de Kieslowski neste segundo episódio de Decálogo. Mas, ao contrário do episódio I, onde o ícone do ser divino desobedecido leva à morte, no segundo filme, o poder  divino comanda o caminho à vida, mesmo que sob a constante ameaça da morte, como se ambos os desígnios estivessem em eterna confrontação. Ambientado no mesmo conjunto habitacional do primeiro filme, e assim será durante toda a obra, o episódio II fala dos problemas humanos em outros apartamentos. Desta vez, conhecemos Dorota, uma muilher que acompanha o tratamento do marido gravemente doente em um hospital, vivendo em segredo um dilema pessoal: apesar do seu casamento romântico e bem sucedido, Dorota se envolve com outro homem e engravida. Vendo o marido à beira da morte, ela se debate psicologicamente entre manter a criança, caso o marido morra, ou abortá-lo, caso ele sobreviva. Esta espera é melancólica e angustiante. No terceiro mês de gravidez, ela não tem muito tempo para esperar o desfecho clínico do moribundo e passa a acompanhar o caso como se vivesse uma sentença de morte: a de ser mãe.



Kieslowski cria um ambiente melancólico e asfixiante durante toda essa espera e vemos na tela a genialidade do diretor polonês ao optar, cinematograficamente, por um belo conjunto de sigmas que, aos poucos, nos contam a estória que não podemos ver: a dos sentimentos. Seus personagens economizam palavras para engrandecer uma linguagem corporal de reflexão, ponderação, julgamento e autocondenação. Enquanto no primeiro episódio a morte é o fim, neste segundo, a morte é apenas uma ameaça à vida, mas não deixa de cobrar o seu tributo numa visão menos materialista. Aqui a confrontação entre vida e morte baseia-se na condição de que uma vida só poderia acontecer com a anulação da outra. Apesar de uma estória mais complexa, por uma maior quantidade de elementos contextuais, ela é de fácil entendimento. Neste caldeirão humano criado por Kieslowski, vemos algumas preciosidades da linguagem roteirística. Durante boa parte do filme, a personagem Dorota está acachapada pela ameaça da morte, dominada pela incerteza do que se tornará a sua própria vida e pelo medo tanto de perder o marido quanto de abortar e não tornar-se mãe. Aqui o comando do seu destino está terceirizado ao poder divino, quando só lhe resta rezar e acreditar em algum futuro, pois não sabemos ao certo sobre qual ela, intimamente, deseja. Mas, quando a estória começa a se ajustar para o final, vemos o médico responsável pelo caso de Andrewj, marido de Dorota, assumir esse poder sobre o destino ao jurar à ela que ele morrerá. Dorota faz uma visita ao médico e tudo parece que ela, ao confiar nas palavras do médico, decide não abortar. Mas o médico estava equivocado ao jurar o final da vida de Andrewj por observar a progressão da doença através de um microscópio. Na última cena, vemos Andrewj recuperado e de saída do hospital.



Retratando o mandamento no qual o divino avisa, "não invocarás o Santo Nome de deus em vão", ponto central do segundo episódio, Kieslowski reforça o recado ao nos alertar para também não ousarmos assumir o papel do Criador, nem mesmo através da ciência! O belo sigma criado pelo diretor nos avisa que Andrewj sobrevive ao mostrar uma abelha lutando para sair do ambiente aquoso de um suco num copo, escalando o cabo de uma colher ao preço de um esforço hercúleo. O inseto se arrasta com extrema dificuldade, mas consegue alcançar a borda do copo, onde, finalmente, caminha alguns passos, bate as suas asas e recupera a sua liberdade.


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

DECÁLOGO: EPISÓDIO I - KRZYSZTOF KIESLOWSKI

Quando no século XVIII o Iluminismo tratou de colocar a razão no centro do pensamento a fim de reformar a sociedade em resposta à intolerância da Igreja e do Estado, quebrando o curso da tradição medieval e desencadeando um incontável número de novas tendências de comportamento, a natureza passou a ser o interesse central do conhecimento científico, com o objetivo de torná-la útil ao homem moderno. Desde então, a ciência assumiu o seu papel no estudo do universo e contribuiu para o progresso da humanidade, tentando arduamente superar os resíduos da tirania e da superstição herdados da Idade Média. Moldava-se aí um novo paradigma através do qual o pensamento parecia galopar, finalmente, rumo às verdades relativas de ponta. Apesar do avanço científico para explicar a vida, faltou-lhe bases para encontrar também o seu sentido, um nicho que se arrasta por séculos inabitável, como um desafio moderno solapado pelas forças remanescentes da espiritualidade religiosa e de misticismos cuja a validade de sua simbologia parece atemporal e inquebrantável. Nesta casa sem dono, ainda hoje não habitada pela ciência, o nicho espiritual terminou por se manter em confrontação permanente com o mundo científico, e assim continuou como uma disputa fluente para muitas sociedades. 

Kieslowski coloca no centro do seu primeiro episódio, a questão da fé em um Deus misterioso, governante e onipresente, que lança teorias a serem praticadas pelos crentes no seu poder, discute o sentido da vida e a razão da morte como duas condições intrínsecas ao homem, mas que ele mesmo desconhece como lidar em benefício de si mesmo: na mesma medida em que falta-lhe uma compreensão sensata do mundo em que vive e da realidade em que está inserido, desconhece o seu destino depois da morte. Em suma, ao não saber por que vive nem o que será dele depois da morte, o homem projeta-se num vazio existencial, agarrado, firmemente, à fé e ao autoengano. Isto é, procura no mistério a razão para a própria vida e foge do seu destino ao final dela. Esse assustador panorama humano ganha movimento nas lentes de Kieslowski através da relação entre um pai professor universitário, cientista, e um filho ainda pequeno, mas inteligente e questionador o suficiente para procurar saber tudo sobre a vida e a morte. As respostas, entretanto, revelam que a teoria espiritual incutida pela Igreja falha na prática cotidiana, mergulhando o homem no mesmo vazio existencial de suas certezas.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O DECÁLOGO DE KIESLOWSKI

Muito antes de realizar a trilogia das cores na França, KRZYSZTOF KIESLOWSKI fez DECÁLOGO para a televisão polonesa - 10 episódios de média metragem, cada um deles retratando um dos 10 Mandamentos. Kieslowski interpreta os mandamentos em imagens, mostrando a ambiguidade e a contradição implícita nas tabulas de Moisés. A série foi escrita com a intenção de aplicar os mandamentos ao cotidiano do mundo moderno e à dificuldade de aplicar teorias na prática na eterna busca para o sentido da vida. Kieslowski estava interessado no desafio filosófico de retratar as dificuldades da sociedade polonesa, extremamente católica. A série foi aclamada mundialmente e ganhou inúmeros prêmios internacionais. Hoje Decálogo é considerado uma das 10 mais importantes realizações cinematográficas dos últimos 25 anos - considerando a escolha realizada em 1989. A partir de hoje escreverei, semanalmente, no meu blog Cinema & Consciência, as críticas para cada um dos episódios.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

PETER PAN PARA ADULTOS

O TAMBOR, do genial Volker Schlondorff, baseado no livro homônimo de Günter Grass, ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e a Palma de Ouro em Cannes. O filme fala de Oskar, uma criança que não quer crescer numa Alemanha à beira do fascismo e a crítica está justamente aí, isto é, no tipo de sociedade que os adultos criam para as novas gerações - uma grande questão. Enquanto ninguém parece se importar com isso, o futuro permanece obscuro e desesperançoso. Schlondorff levanta algumas perguntas. Qual é o legado que as gerações produzem? ou que tipo de legado é possível criar em meio ao que se tornou uma vida pela sobrevivência, quando o mundo perde cada vez mais o sentido de coletividade? Em suma, o diretor coloca o papel da mini-peça em debate, desafiando os nossos miolos a ir mais fundo na reflexão do que podemos, efetivamente, fazer por algo melhor no futuro. Um filme inteligente, profundo e genial, para adultos que querem crescer.


domingo, 7 de setembro de 2014

A MINHA LISTA DOS 10 MELHORES DOCUMENTÁRIOS DE TODOS OS TEMPOS

Uma relação de docs muito difícil de levantar, porque, invariavelmente, deixamos muita coisa boa de fora. Mas assumo meus pecadilhos com uma lista de 10 títulos - na verdade 11, com um empate no final. Cheguei a essa lista pelo fato de que cada uma dessas produções serviu como um divisor de águas na arte do filme-documental. As posições não indicam ranking. 

(1) Um Homem com uma Camera (Dziga Vertov - Rússia, 1929); 

(2) Caixeiro-Viajante (Salesman) (Albert Maysles, David Maysles e Charlotte Zwerin - EUA, 1968); 
(3) Nanook, O Esquimó (Robert Flaherty - EUA, 1922); 
(4) Os Pescadores de Aran (Man of Aran) (Robert Flaherty - EUA, 1934); 
(5) Homo Sapiens 1900 (Peter Cohen - Suécia, 1998); 
(6) Crônica de um Verão (Edgar Morin e Jean Rouch - França, 1961); 
(7) A Corporação (Mark Achbar, Jennifer Abbott e Joel Bakan - EUA, 2003); 
(8) Fahrenheit (Michael Moore - EUA, 2003); 
(9) Grey Gardens (Albert Maysles e David Maysles - EUA, 1970); 
(10) Edifício Master (Eduardo Coutinho - Brasil, 1998) e Crise (Robert Drew - EUA, 1963). 



sexta-feira, 5 de setembro de 2014

QUEBRANDO FRONTEIRAS NAS LENTES DE RIKLIS

Os conflitos de fronteira têm marcado o Estado de Israel e seus visinhos nos últimos tempos. Essas disputas por pedaços terras são surreais pela violência com que se mata apenas para compor mapas geopolíticos. Porém, é ainda mais surreal uma região existir sem o reconhecimento de um só país. É onde se localiza Majdal Shams, um vilarejo nas Colinas de Golã, entre a Síria e Israel, ocupada pelo povo druso, cuja nacionalidade é indefinida (pela disputa interminável entre os dois países). O casamento entre uma drusa e um sírio é, assim, feito na fronteira, com a ajuda de um representante da Cruz Vermelha. Mas a burocracia cruel reserva uma grande surpresa para o final deste evento - e ali temos a grande mensagem do filme. Mais uma ótima produção do diretor israelense Eran Riklis, aclamado diretor israelense. Um dado importante no filme é que ele mostra uma vertiginosa troca de poderes entre Israel e Síria sobre o cidadão e uma verdadeira lambança decretada em selos de vistos. Se você não estiver atento, você certamente perde o andar dessa conturbada história de nacionalidades, terras, fronteiras etc. Outro detalhe sobre essa produção é que ela reúne atores e profissionais israelenses, drusos e palestinos, evidência suficiente de que o cinema quebra fronteiras e ignora as disputas raciais e religiosas.

.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

CLOSE-UP: A OBRA-PRIMA DE KIAROSTAMI

Na sessão de sábado, mais uma obra-prima do mestre iraniano Abbas Kiarostami. CLOSE-UP mostra até que ponto os personagens que assumimos na vida cotidiana é uma mistura de sonho e auto-engano. Esses pequenos valores almejados podem muitas vezes desprezar princípios, mas quase sempre, movidos por pura paixão, assumir alguns desses personagens é um ato ingênuo e desesperado na busca pelo sentido da vida. A obra de Kiarostami é genial como quase tudo que faz. Mestre em criar espelhos que nos reflete em pequenas doses de realidade e nos faz refletir quando o filme termina, Kiarostami nos congela nessa reflexão como se a sua camera tivesse nos capturado em close-up. Um filme brilhante! Close-Up - Filme completo - no player abaixo.

domingo, 31 de agosto de 2014

POUCA QUANTIDADE COM GRANDE QUALIDADE: ESSE É O CINEMA IRANIANO


Abbas Kiarostami ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 1997, com Gosto de Cereja e o Leão de Ouro do Festival de Veneza, em 1999, com O Vento Nos Levará. Majid Majidi foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1999, com Filhos do Paraíso. Asghar Farhadi levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o Globo de Ouro e o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 2012, com A Separação. Mohsen Makhmalbaf é um multi-premiado diretor, conhecido internacionalmente, realizador de filmes como O Ciclista (1987), Um Instante de Inocência (1996), A Caminho de Kandahar (2001) entre muitos outros. Jafar Panahi fez o premiado Balão Mágico. Para não falar em outros grandes diretores, como Mani Haghighi, Kamran Shirdel e Samira Makhmbalbaf. Só me resta questionar: Por que não somos o Irã nos cinemas???

terça-feira, 26 de agosto de 2014

A BELA SONATA DE BERGMAN

Na sessão de sábado, SONATA DE OUTONO de INGMAR BERGMAN. O homem está demasiadamente preso à suas autodefesas para tornar-se um ser reconciliador, e quando a reconciliação torna-se uma condição de sobrevivência afetiva, os limites dos universos intraconscienciais se expandem na urgência de enfrentar quem realmente somos ao custo da dor de mudar. Fugimos dessa dor que causamos aos outros por ser a mesma dor que causamos a nós mesmos. Ao contrário do que imaginamos, a dureza das piores atitudes revelam a fraqueza do caráter, não pela virulência com que essa dureza se expressa, mas pela fragilidade a partir da qual as suas couraças, que nos ajudam a fugir da realidade, nos encerram em recônditos cômodos obscuros. Ingmar Bergman constrói um cenário realista do processo reconciliatório em Sonata de Outono, colocando fortes e fracos na mesma ponta de galho em meio à uma ventania de outono. 

Na medida em que as confrontações derrubam máscaras e removem couraças, as palavras desnudam, afastando mentiras defendidas como verdades. Mas ao fim de suas cenas, Bergman mostra-se um profundo estudioso da psicologia humana ao optar por um final em que, sensatamente, conclui que, ao mentir em demasia para si mesmo, o homem altera indefinidamente a sua essência, não por sua incapacidade de cura, mas pela falta de lucidez contraída enquanto ele se manteve escondido nas suas mentiras e das quais sente-se incapaz de sair. Mas a sua condição não parece desesperançosa. Resta a compreensão movida pelo amor - o velho antídoto. A intensidade de Bergman e sua profundidade narrativa extasiam os amantes do seu grande cinema-filosófico-psicológico. Sonata de Outono é um clássico atemporal para quem gosta de filmes que educam. Revejo esse filme como se lê um bom livro duas vezes ou mais, e a cada olhar, a obra-prima de Bergman ressurge fresca e renovada.


sexta-feira, 22 de agosto de 2014

NOSSA POBRE CULTURA NACIONAL

Em 2014, pouco se ouviu falar de grandes bilheterias para filmes fora do gênero comédia. A Globo Filmes está derramando comédias no mercado nacional e arrastando multidões aos cinemas. No que se tornou a nossa indústria cinematográfica doméstica? Terá o mesmo acontecido com a indústria fonográfica que monopoliza o mercado com sertanejos, funks cariocas e axés? O Brasil joga a sua História para o ar e abraça o Fast Food Cultural. Saudades do Glauber Rocha, Walter Lima Junior, Lima Barreto, Cacá Diegues, Paulo Cesar Saraceni, Gustavio Dahl, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos... Numa época de culto ao corpo e à saúde, o brasileiro despreza o culto ao cérebro!