“Lembra-te
do dia do sábado para santificá-lo” é o mandamento tratado no terceiro episódio
de Decálogo, colocado em prática pelo povo hebreu desde o reinado de Ciro II
(537 a.c.). Mas tendo Cristo ressuscitado num domingo, o primeiro dia da semana
passou a ser o Dominus, Dies Dominica.
Kieslowski optou por centralizar a sua trama num viés deste mandamento,
“guardarás domingos e festas sagradas”. A sua personagem Ewa é uma mulher em
crise, angustiada e alucinada pela solidão e pelo homem que ama. Na noite de
Natal, ela vai à casa do seu amante, Janusz, pedir ajuda para procurar o seu
marido desaparecido. Janusz deixa a família para cair no jogo amoroso de Ewa.
Aqui não há mais o rapport criado por
Kieslowski para uma possível ligação com os seus personagens centrais, como
ocorreu nas duas primeiras tramas. Ewa é fria a calculista e pouco sensibiliza,
justamente porque parece maquiavélica ao calcular os seus atos, desesperados
pela sua solidão e falta de amor próprio. O cenário fortalece essa impressão –
a maioria das cenas foi realizada durante a madrugada do dia 25 de dezembro,
numa Varsóvia coberta de neve, desabitada e gélida, onde apenas os carros dos
personagens e uma viatura da Polícia trafegam no deserto urbano, um recurso
poderoso para enfatizar a solidão.
Os sigmas,
uma especialidade de Kieslowski, ganham vida através dos riscos nos quais os
personagens se colocam ao dirigir em alta velocidade e desafiando o perigo, na
medida em que o drama avança e os diálogos aprofundam a condição do amor
impossível e do casal incompleto. Assim como em suas vidas, eles buscam ao
volante algum tipo de acidente que mude o rumo dos acontecimentos, porém, em
mais um sigma inteligente, numa mistura de ímpeto, loucura e medo, os elementos
emocionais de toda relação dúbia, o instinto de sobrevivência prevalece e o
casal sai ileso. A noite avança, enquanto eles buscam pelo marido desaparecido
de Ewa e os pormenores da relação vêm à tona. Janusz é um homem dividido entre
duas mulheres na mesma medida em que Ewa sabe do seu poder sobre ele e age como
uma mulher carente e vampira da sua presença. Ela não mede esforços e
imaginação para tirá-lo da família naquela noite de festa sagrada, onde o
sagrado perde espaço para o mundano no universo do casal.
Aos poucos,
o drama começa a descortinar a realidade do triângulo amoroso. Ewa havia criado
o desaparecimento do marido, que, na verdade, havia lhe abandonado. No outro extremo
do triângulo, Janusz percebe a trama da amante e se deixa enganar por ela, não
por uma dependência afetiva ou amorosa, mas por outra puramente sexual, um
elemento que o diferencia, pragmaticamente, nessa atração que não chega a ser
fatal. Na última ponta do triângulo há ainda a mulher de Janusz, que encontra o
marido quando ele retorna pela manhã e sua fala ao encontrá-lo deixa claro que ela
está ciente da relação extra conjugal do marido. É exatamente quando a estória
revela os seus mistérios que vemos como as relações humanas são, em número
assustador, primárias e afetivamente patológicas. Partimos desde a aceitação e
do subjulgo da esposa até a audácia e coragem de desespero da amante, ambas
resignadas em suas condições, passando pela zona de conforto do marido que
usufrui, egocentricamente, das carências afetivas das suas mulheres, o que não
deixa de ser um retrato fiel dos papéis que não raramente ocorre na vida real.
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