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terça-feira, 30 de setembro de 2014

DECÁLOGO: EPISÓDIO IV – KRZYSZTOF KIESLOWSKI

A tônica que permeia todos os episódios de Decálogo é a confrontação da natureza humana com os 10 conhecidos Mandamentos da Lei de Deus, divulgada ao povo egípcio por Moisés. Para isso, Kieslowski abre mão de um julgamento moralista religioso para mostrar, simplesmente, que entre a teoria e a prática há uma longa estrada repleta de atalhos “pecaminosos”, uma vez que o ser humano em sua natureza é um “pecador”. Para entender melhor essa condição num escopo que transcenda os limites da religião, o posicionamento narrativo se isenta do verbo para mostrar o experimento e suas evidências, identificando no cotidiano a inevitabilidade da conduta incoerente, dos deslizes morais e das falhas de valores e princípios comprometidos com a necessidade de expressão do desejo humano. A automoralidade de não se permitir falhar está tão dissociável e distante de um modelo de comportamento real quanto está a loucura da sanidade, sendo muito mais sensato a aceitação dos erros a fim de corrigi-los do que a pretensão de mantê-los toda uma vida sob a égide da mentira. Esse sistema de autodefesa do ego, mitigado por um poder inalcançável, torna o homem distante de si mesmo e enfraquecido para um autoenfrentamento. Nesse ponto, mais especificamente, Kieslowski nos apresenta o seu quarto episódio.

Baseado no mandamento “honra teu pai e tua mãe para que teus dias se prolonguem sobre a Terra”, o Episódio IV conta a estória de um homem viúvo, Michael, que vive sozinho com a sua filha única, Anka. Desde as primeiras cenas notamos que entre os dois há perguntas não respondidas, pormenores de uma relação que crescem de importância quando uma carta lacrada é encontrada pela filha. No envelope está escrito com a letra da mãe falecida “abrir apenas depois da minha morte”. Nada mais tentador do que uma ordem escrita dessa natureza. Mas Anka resiste diante da carta jamais aberta. O pai sai em viagem de negócios e ela passa os próximos dias com a carta na mão num embate pessoal entre abri-la ou não. A pergunta “o que será que está escrito aqui?” parece saltar da tela através dos pensamentos de Anka. A relação que ela tem com o pai ganha uma luz no final do túnel, quando Michael retorna de viagem e ela lhe revela ainda no aeroporto que sabe da existência da carta e do seu conteúdo: Michael não é o pai de Anka. O primeiros ajustes dos não-ditos são feitos diante de uma foto da mãe quando jovem entre dois rapazes – um deles pode ser o pai de Anka. Aqui, Kieslowski abre um pouco mais o diafragma da sua lente para mostrar que Anka reserva pelo pai um desejo incestuoso contido, secretamente também mantido por Michael. As sutilezas de um roteiro escrito com maestria não precisam de meias palavras para deixar claro nesse ponto da estória a cumplicidade de sentimentos que ambos nutrem um pelo outro – olhares, gestos, comportamentos entre Michael e Anka revelam muito mais do que qualquer texto. O Complexo de Édipo torna-se então explícito embora até aqui tratado entre linhas.


Kieslowski tratou de criar Anka como uma estudante de artes dramáticas para que ela representasse na vida real as distorções de comportamento que adotamos quando assumimos personagens. Ela é uma atriz em todos os sentidos, quando resolve atuar como mulher de Michael. Contudo, através dessa representação, tanto pai quanto filha atende uma falsa postura social e familiar diante do desejo carnal que os atormenta. Esses universos misteriosos são enfim descortinados. O desfecho da estória é surpreendente, levando a cabo a manutenção da mentira como recurso de fuga de uma realidade oposta à outra muito diferente, idealizada segundo desejos que conseguem vencer a barreira de um dilema moral. Não sabemos, na verdade, no que se tornará a relação entre Michael e Anka, mas para um bom entendedor uma boa trilha sonora final basta.

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