Bem-vindos ao Cinema & Consciência, um novo espaço para a difusão e a discussão do cinema brasileiro e internacional. Vamos falar de filmes ou documentários, discutir ética e estética do cinema, com enfoque nas pessoas, nos temas e nos fatos. Os comentários dos visitantes serão sempre bem-vindos.

Todos os textos neste blog são de autoria de Mário Luna, salvo aqueles em que a fonte for mencionada.
Críticas construtivas e sugestões em geral, envie e-mail para este blogger: cinemaconsciencia@gmail.com

"Não acredite em nada que ler ou ouvir neste blog. Reflita. Tenha as suas próprias opiniões e conclusões"





segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Retrospectiva Espiritualista

O cinema tem, ao longo de já algum tempo, voltado suas lentes para a questão da espiritualidade. Numa perspectiva religiosa, superproduções como Ben-Hur, Os Dez Mandamentos, Jesus de Nazaré, Joana D'arc, Quo Vadis, Irmão Sol Irmão Lua, entre outros, pontuaram as listas dos mais vistos e revistos pela crítica. A partir dos anos 80, podemos dizer que as lentes deram então maior zoom em filmes sobre cultura e religião orientais, como O Pequeno Buda, Sete Anos no Tibet, Viver a Vida, A Balada de Narayama, Kundun, O Último Imperador, Samsara, só para mencionar alguns dos mais conhecidos. Depois de sobrevivermos, entretanto, a série aparentemente inesgotável de filmes com temática religiosa-satânica, como O Iluminado, O Exorcista (em incontáveis partes), (assim como foi) A Profecia, Coração Satânico, O Enviado etc., entre centenas de outros engajados em aterrorizar platéias, chegamos enfim à uma fase mais racional, coerente e cientificamente testada dos ghost movies, a partir, talvez, do sucesso de Ghost - Do Outro Lado da Vida. Particularmente acho esse filme, juntamente com Em Algum Lugar do Passado, os grandes divisores de água do cinema com temática espiritual. Foram depois de tais sucessos de bilheteria que uma grande safra de filmes espiritualistas deixaram a religião e seus demônios de
lado para mostrar um universo paralelo e paranormal sensato, coerente e, como disse, cientificamente comprovado.

Com o avanço, nos Estados Unidos, das pesquisas sobre Experiências Fora do Corpo (EFC) e Experiência de Quase Morte (EQM), além de um olhar mais profundo nos casos de fenômenos paranormais, como vemos, por exemplo, em vários seriados para a TV, como Ghost Whisperer, Supernatural, Ghost Hunters, Fringe, entre outros, o cinema tem produzido ótimos roteiros espiritualistas, com destaque para Os Outros, Além da Eternidade, Amor Além da Vida, O Orfanato, Passageiros, E Se Fosse Verdade, A Troca e Campo dos Sonhos - e certamente estou cometendo alguma injustiça nos destaques. Há também os sempre sensatos filmes asiáticos sobre o tema, como The Eye - A Herança, Espíritos, Dorm - O Espírito, Depois da Vida, e muitos outros.

Os 10 requisitos básicos do sistema (de produção) para se fazer um bom filme espiritualista são (1) não trazer monstros, vampiros, nem a já tão famigerada imagem do demônio na capa, contracapa ou encarte, se houver, (2) realizar
uma pesquisa séria e cientifica, baseada em estudos de casos, sobre o tema tratado, (3) não ter tão-somente a intenção de aterrorizar a platéia, (4) não fazer (o mal) uso da fantasia e da alucinação, (5) não misturar temas religiosos com fenomenológicos - por exemplo, anjos não cabem mais no papel dos amparadores extrafísicos, nem projeção astral deve vir no mesmo pacote do diabo, (6) apresentar histórias orgânicas coerentes, isto é, com começo, meio e fim e a lógica norteando todo o enredo, (7) não envolver religião, nem qualquer corrente filosófica, dogmática - como em filmes que suscitam pecado, pecadilhos e punições divinas, (8) não envolver mecanismos de manipulação, como símbolos e esteriótipos - como em roteiros que sugerem que todo parapsíquico é um cara esquisito, de poucos amigos e olhar endemoniado, (9) não misturar temas distintos como sonho e projeção, realidade e ficção, sanidade e loucura, pois isso deixa o espectador perdido, além de cético quanto à veracidade dos fatos do roteiro, e finalmente (10) não abusar do uso de gritos, rezas do além, gemidos, sussurros, vozes macabras incompreensíveis, pois ninguém aguenta mais esse tipo de coisa, e tão pouco do
uso do ectoplasma nas cenas de aparição - ainda se entende pouco deste vapor extrafísico e normalmente vemos o efeito da aparição sem qualquer critério de verossimilhança. A consciência extrafísica parece ter uma vida física independente e sobressalente, e não é bem assim o que está escrito nas leis da natureza.

Muitos já me perguntaram se eu não teria uma lista de filmes espiritualistas
para sugerir. Sempre respondi que tinha várias listas. E a dificuldade sempre foi a de justamente compilar uma única listagem, com heterocrítica na qualidade dos filmes e na classificação espiritualista (ghost movies). Uma preocupação constante ao criar uma única listagem de filmes espiritualistas é a de englobar filmes evangelistas e religiosos, como filmes sobre milagres ou com apelo demoníaco. Contudo, filtrar a qualidade dos fenômenos ao ponto de desconsiderar o da possessão pode ser uma decisão preconceituosa, de modo que decidi por incluí-los. Mas este não é, ou foi, o único dilema. Nas muitas listagens encontradas na internet e/ou enviadas por amigos há filmes que ainda não vi e, portanto, não tenho massa crítica para sugerí-los (ou não). Porém, em se tratando de listagens especializadas, muitas de sites espíritas, ou
enviadas por pessoas ligadas ou interessadas pelo tema, decidi por incluir esses filmes, pois as listas, assim como a exposta logo abaixo, servem como sugestão para mim... também.

Para o levantamento da lista abaixo não houve critério de escolha quanto ao estilo da obra. Há drama, comédia, aventura, policial, suspense, terror, religioso, documentário, programa exibido na televisão etc.
Os títulos em língua estrangeira indicam que a versão lançada no Brasil não foi encontrada até o momento - isso não que dizer que não tenham sido. As obras com continuação, como filmes com parte 1, 2, 3 etc. foram lançadas apenas no título (por exemplo Cocoon - evitando mencionar Cocoon 1, Cocoon 2 etc.). E muitos filmes possuem continuações, como Exorcista, A Profecia, Espíritos, entre outros. O mesmo critério foi adotado para remakes ocidentais de originais orientais, como é o caso de The Eye - A Herança, que teve versões feitas nos Estados Unidos. A exceção ficou por conta de " Imagens do Além," remake de "Espíritos," original japonês devido a qualidade da versão americana valer a pena ser assisitida, mesmo por aqueles que viram o original japonês.

Falando com os Mortos
Depois da Vida
A Casa dos Espíritos
As Cico Pessoas que Você Encontra no Céu
As Profecias De Nostradamus
À Espera de Um Milagre
A Sétima Profecia
Quando os Mortos Falam
Dorm, O Espírito
Danika
Energia Pura - Powder
Paixão Eterna
Afterwards
Book of Days
Os Outros
Joelma 23° Andar
Quando os Anjos Falam
A Reencarnação de Peter Proud
No Te Mueras Sin Dicerme Adonde Vas
Minha Vida na Outra Vida
O Peso da Água
Aparição
O Mistério da Libélula
Corpo Fechado
Passageiros
Fenômeno
Na Hora da Zona Morta
Visões
Imagens do Além
Um Olhar na Escuridão
A Árvore Dos Sonhos
Os Três Desejos
Visões do Além
Eternity - O Guerreiro do Tempo
Cidade dos Anjos
Em Busca Dos Anjos
Amor Além da Vida
Amor Maior Que A Vida
O Homem Especial
A Procura de Alguém
Agnes de Deus
Juro Por Deus
Linha Mortal
O Exorcista
Ecos do Além
Amazing Stories - Histórias Maravilhosas
Voltar a Morrer
Competição de Destinos
Salvo pela Luz
Destino em Dose Dupla
Efeito Borboleta
A Profecia
Minory Report
De Caso com o Acaso
Manika
O Bêbê de Rosemary
Distante para Sempre
Em Algum Lugar do Passado
Ghost - Do outro lado da vida
Ghost Writer - Com A Morte Não Se Brinca
O Céu Pode Ajudar - Heaven Can Help
Expresso para Katmandu
Campo dos Sonhos
Espíritos
Minhas Vidas - Shirley Mclaine
Morrendo para Viver
Dreamscape - Morte nos Sonhos
O Sexto Sentido
O Exorcismo de Emily Rose
Além da Eternidade
Experiências Fora do Corpo
Vida Além da Morte
Fernão Capelo Gaivota
Contato
School Spirit
Um Visto para o Céu
Atormentada
Vibes - Boas Vibrações
A Corrente do Bem
Um Anjo Rebelde
Byrd
Grand Cannion
Ressureição
Revelação
Stigmata
Vanilla Sky
Asas do Desejo
O Jardim da Meia-Noite
O Avião
Cartas de Amor
Um Espírito Baixou em Mim
A Troca
A Profecia dos Anjos
A Última Profecia
A Educação da Pequena Árvore
O Jogo dos Espíritos
The Eye - A Herança
Em Busca de Um Sonho
E Se Fosse Verdade
Out Of Body
Celta
O Chamado
Uma Mente Brilhante
Waking Life
Ponette
Os Órfãos
Paixões Paralelas
Reencarnação
Asas do Desejo
Bezerra de Menezes
O Grito
Duas Vidas
Morrendo e Aprendendo
O Orfanato
O Céu Pode Esperar
Lembranças de Outra Vida
O Dom da Premonição
Gladiador
Ecos do Além
Ilusões Pergiosas
Jogada Decisiva
A Chave Mestra
Um Sinal de Esperança
Cidade da Esperança
Alma Perdida
The Nines
Encontro Marcado
Os Olhos de Laura Mars
As Duas Vidas de Audrey Rose
O Encontro - The Gathering
Sem Medo de Viver
Alta Frequência
O Esconderijo
Os Dois Mundos de Jennie Logan
Espíritos - Believe
Tão Longe Tão Perto
Gritos do Além
Os Espíritos - The Frighteners
Segredos do Passado
Premonições
Um Espírito Atrás de Mim
A Visão - The Sight
O Fantasma de Lucy Keyes
Vivendo na Eternidade
Defending Your Life
Poder Além da Vida
Jogos Sinistros
Muito Além de Rangun
Os Inocentes
A Mão do Diabo
A Menina Santa
Luzes do Além
O Céu se Enganou
Oriundi
Protegida por um Anjo
O Jardim dos Esquecidos
A Espinha do Diabo
A Premonição
Conversando com Deus
Os Mensageiros
A Passagem
O Invisível
Um Conto de Natal
O Advogado do Diabo
Awake - Por um Fio
Evocando Espíritos
Cinco Dias Antes da Morte – Five
Os Anjos da Guarda
Os Fantasmas Se Divertem
O Violino Vermelho
O Terceiro Milagre
Joanna D'arc de Luc Besson
Papai Fantasma
Sem Limites para Sonhar
Distante para Sempre
Déjà Vu
Dona Flor e Seus Dois Maridos
Espíritos Inquietos
Assombração
Coisas Para se Fazer Quando Você Está Morto
Filha da Luz
Cocoon
O Pequeno Buda
Kundun
O Milagre Veio do Espaço
Final Fantasy
O Iluminado
Alguém Lá em Cima Gosta de Mim
A Morte Lhe Cai Bem
Alucinações do Passado
Dark Water
Navio Fantasma
Na Companhia do Medo
Mensagem do Além
O Enviado
Sete Anos no Tibet
Adorável Avarento
Poltergeist – O Fenômeno
Dogma
Feito no Céu
Antes que Termine o Dia
Já Nos Conhecemos
O Céu se Enganou
Silk - O Primeiro Espírito Capturado
As Brumas de Avalon
As Cartas de Chco Xavier e Outras Histórias
Eurípedes de Barsanulfo - Educador e Médium

INFOGRAFIA

http://www.consciencial.org/filmes.html
ttp://www.oconsolador.com.br/linkfixo/filmes/principal.html
ttp://www.illuminare.pro.br/filmes_espiritas_e_espiritualistas.htm
http://filmefantastico.blogspot.com/
http://pipocandoonline.blogspot.com/2008/07/filmes-espiritualistas-captulo-ii-os.html
http://forum.alemdosegredo.com/verTopico.php?id=1178
http://mediunidadelivre.spaceblog.com.br/248606/Filmes-tematicos-espiritualistas/

domingo, 15 de novembro de 2009

A Criação da Loucura

Uma família vive numa mansão no interior da Inglaterra.
O pai é um Lorde falido, que vive pressionado a vender a sua propriedade; a mãe está muito doente e passa os dias numa cama, dependendo de medicamentos e cuidados; o único filho sofre de deficiência mental e, como a mãe, vive a base de fortes medicamentos. O cenário para a trama do diretor Simon Rumley está criado, remontando em parte o seu drama pessoal: Simon perdeu o pai de ataque cardíaco e, pouco depois, a mãe, de cancer. Tendo ele mesmo vivido um pesadelo
familiar, numa época traumática da sua vida, escrever Distúrbio Fatal foi uma válvula de escape para seus fantasmas interiores. Originalmente, o filme fora idealizado para ser uma história surreal, pesadelíaca, além da imaginação. Mas Simon chegou ao produto final conservando os ingredientes originais para inserí-los numa realidade tangível: o inferno particular de uma família malfadada a doenças e à interprisão, num cenário de puro suspense e terror.

Quando o pai anuncia que fará uma viagem, o filho deficiente mental se vê na posição de "o homem da casa" para cuidar ele mesmo da mãe doente. Mas o pai rejeita a idéia e contrata uma enfermeira, que, mais tarde, não será aceita pelo adolescente. A impossibilidade de cuidar da mãe lhe trás culpa, rejeição, raiva, frustração e desamparo. Tentando ajudar a mãe, tudo que ele quer provar é que pode ser "o homem da casa" na ausência do pai, deixá-lo orgulhoso, ganhar definitivamente a sua confiança e ainda mostrar que sua doença não o torna um inválido, uma vez que, como tal, ele é tratado pela família. Quando enfim se vê sozinho na mansão, ele desdobra-se de atenção para cuidar da mãe acamada, mas, tendo ele abandonado seus próprios remédios, o seu estado clínico agrava-se cada vez mais, transformando a mansão em um cenário de puro terror e suspense.

O cenário narrativo mostra Distúrbio Fatal em duas partes distintas: na primeira, mais real e cotidiana, acompanhamos a agonia do filho adolescente e o calvário de sua mãe, dependente dos seus cuidados, depois que ele trancou todas as portas da mansão para que a enfermeira contratada pelo pai não pudesse entrar. Na segunda, alucinações, associações mentais patológicas, delírios, sonhos etc. se misturam para mostrar o universo da loucura por dentro, quando o adolescente entra em parafuso crônico. Os detalhes da história pessoal do doente mental são aqui mostrados, numa sequência repleta de referências psicanalíticas, necessárias para o desemaranhamento narrativo e o entendimento da história.

O que incomoda em Distúrbio Fatal é que tudo, por mais alucinógeno que possa ser para os olhos, é real. Na loucura não há fantasias. Tudo deve ser levado a sério. O filme sugere uma irrealidade que, no fundo, apenas reforça sua veracidade. Isso gera uma discussão ainda mais intensa: a relação da família com o seu doente mental. Quando o pai do adolescente não permite que ele atenda a porta da mansão, pois ele assustaria as pessoas, vemos que esses pacientes vivem numa espécie de encarceramento domiciliar. Ilda Witiuk e Rosangela Castro, em seu artigo, "Família do Portador de Transtorno Mental: Vítima ou Vilã ?," falam da difícil relação que se estabelece entre doente mental e família. Entre os resultados da pesquisa realizada pelas autoras destaquei alguns fatos importantes para o entendimento da condição em que o personagem central de Distúrbio Fatal se encontra.

(...) A efetivação do processo de desospitalização com o incentivo do Estado, a não criação de estruturas de apoio para o propcesso de desinstitucionalização do portador de transtorno mental, gerou desamparo aos doentes. A redução da responsabilidade do Estado tem acometido as famílias com a responsabilidade de provimento de cuidados ao portador de distúrbio mental (...) A família diante desta realidade de desamparo se desespera, pois a presença do doente em casa impõe exigências de cuidado e atenção emocional e material que lhes são inexistentes (...) A sociedade baseia-se no princípio de igualdade, mas é totalmente desigual. A família (...) tem passado por um acelerado procesos de empobrecimento. Este fenômeno tem cada vez mais vitimizado as famílias que não tem suas necessidades básicas atendidas, pois se veem desassistidas, com isso fragilizando os vínculos familiares cada vez mais (...) (A família de um doente mental) (...) fica fragilizada, suas relações internas e externas ficam totalmente comprometidas (...) A luta dos portadores de transtorno mental e seus familiares deve ser principalmente para que o doente mental tenha direito a ter direitos (...).

E, por último, as autoras sugerem (...), é de suma importância eliminarmos o preconceito e buscarmos a garantia dos direitos dos portadores de transtorno mental e sua inclusão nas políticas públicas de uma maneira mais efetiva (...) Ou seja, menos preconceito e mais ação e assistência. Uma última palavra fica para o excelente casting, com um trio de atores cujas atuações soberbas seguramente jamais cairão no esquecimento. Wow! Bravo !

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Grey Gardens - O Documentário

No ano de 1973, um escândalo ocupou as manchetes dos jornais americanos. Autoridades locais de East Hampton, uma área residencial nobre no estado de Nova Iorque, tentaram expulsar mãe e filha de uma mansão decadente do balneário de luxo, alegando falta de condições sanitárias. Isso tudo pode acontecer por inúmeras razões, mas, neste caso, mãe e filha se tratavam das ex-socialites Edith Bouvier Beale e sua filha Edie, outrora pertencentes ao crème de la crème da sociedade novaiorquina. Não apenas este fato inflamava as notícias nos jornais, mas, sobretudo, por elas serem, respectivamente, tia e prima de Jacqueline Kennedy Onassis.

A vida intrigante e pertubadoramente interessante de Edith Bouvier Beale e sua filha Edie foi inicialmente tema do polêmico documentário dos irmãos Albert e David Maysles, "Grey Gardens," lançado em1975. Inovadores da técnica do "cinema direto," os irmãos aportaram na mansão de East Hampton com uma camera e um microfone nas mãos e algumas ideias na cabeça. O resultado produziu um compêndio de excentricidades, protagonizado por duas mulheres, cujos diálogos deixariam perplexos Tenesse Williams e Euguene O'Neil. Mas, Grey Gardens mostra muito mais do que isso. O documentário foi feito dois anos depois da reforma da casa, realizada por Jacqueline K. Onassis, mas ainda é possível sentir a presença do abandono, do descaso, do autoflagelo humano e da imundície na qual Big Edie e Little Edie, como eram conhecidas, mergulharam nos últimos 20 anos de convivência na mansão.

O documentário é pertubador na medida em que gera reflexões inevitáveis, pois registra uma natureza humana não muito comum, totalmente incoerente e ilógica. Como duas mulheres outrora frequentadoras da alta sociedade nova iorquina puderam cair num isolamento tão intenso e num auto-abandono tão profundo ? Como uma mulher linda e rica na juventude não conseguiu um casamento, se este era um valor almejado de Little Edie ? Em linha geral fica difícil entender, mas, vendo o documentário conseguimos algumas dicas. A relação mãe e filha sofre da síndrome da ectopia afetiva e retroalimenta uma interprisão grupocármica difícil de anistiar. Ambas têm fortes tendências autofágicas, tanto pelo autoesquecimento quanto pelo autoflagelo em que as duas vivem submersas e dependentes. Há uma mistura de lucidez temporária e loucura quase permanente nas cenas em que aparecem entulhadas sobre as camas, com outras mil traquitandas, em meio à desordem do ambiente, que poderia muito bem ilustrar a desordem interior da vida daquelas duas ex-personagens da aristocracia americana dos anos 30 e 40.

Big Edie, a mãe, cantava. Little Edie, a filha, tinha sido modelo e tentado ser atriz. Ao serem filmadas pelos Irmãos Maisley, o que elas revelaram não era tanto seu comportamento cotidiano, mas as suas interpretações artísticas frustradas no passado. Os Maisley ilustram bem isso ao abusar da imagem da bela pintura a óleo de Big Edie, na qual ela aparece como uma jovem de beleza ímpar, e que, no momento do filme, estava jogado em um canto do quarto, servindo como esconderijo para os gatos fazerem cocô e xixi.

Do lado de fora da mansão, o abandono não é menos pronunciado. Composta por grandes jardins e um velho casarão, a mansão estava tomada por lixo, detritos, gatos pestilentos, guaxinis e pulgas. Isoladas de tudo e de quase todos, eram incapazes de sustentar as necessidades de manutenção do casarão e deixavam a velha mansão ruir à sua volta, enquanto viviam em condições precárias. Os dois lados da moeda da vida dessas duas personagens, no sentido mais amplo da palavra, convivem no mesmo cômodo: ao mesmo tempo em que vemos a deteriorização generalizada em que as duas se meteram, testemunhamos um esforço consciente de recriar uma certa aura de glamour sobre si mesmas. Essa contraposição entre esse senso de estilo anacrônico e o evidente esquecimento em que se tornou Grey Gardens gera o verdadeiro drama do filme e torna chocante a situação das Bouvier.

Depois do sucesso de Gimme Shelter, documentário que registrou a passagem da banda inglesa Rolling Stones pelo Estados Unidos anos antes, os irmãos Maisles conseguiram com Grey Gardens semelhante aclamação crítica universal, por expôr não só a estranha e dramática existência das Bouvier, mas a própria natureza dos documentários - dentro do estilo cine-verdade. Mas, por outro lado, o filme gerou uma polêmica helênica: a exposição das personagens reais foi vista como ato de desrespeito pelos críticos mais moralistas. Além disso, acusaram os diretores de exibir as mulheres sem os retoques de beleza necessários e imprescindíveis à qualquer beldade que aparecesse na grande tela naquela época.

Numa das cenas finais, Little Edie tem uma longa discussão com a mãe, finalmente confrontando as bases da relação, o que acarretou na malfadada existência de Grey Gardens. Enquanto Little Edie responsabiliza a mãe por tê-la obrigado a ficar na casa e afastado dela todos os pretendentes que teve quando jovem, ela olha para o lado e a câmera corta para um quadro na parede, com a imagem de Little Edie ainda adolescente, bela e com um futuro brilhante. Ao voltar para a envelhecida e ressentida senhora Edie, sempre coberta por véus que escondem sua falta de cabelo, o espectador não pode resistir a associar inconscientemente a cena a uma ideia geral de perda. Perda da juventude, da beleza, de um universo de possibilidades. Esta é apenas mais uma das cenas de compadecimento por uma consciência frágil, débil, perdida, manipulável, carente... intrerpesa com uma mãe igualmente frágil, débil, perdida, manipulável, carente e... intrerpesa. Este é um caso inesquecível de duas mulheres que nasceram para uma vida em comum, longe de quase tudo e quase todos, até que a interprisão as separe.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Grey Gardens - O Filme

Grey Gardens, o fime, foi produzido pela HBO em 2008 e lançado na televisão em abril deste ano, com Jessica Lange e Drew Barrymore nos papéis principais de mãe e filha respectivamente. O DVD da região 1 (América do Norte - a nossa é a região 4) saiu por aqui nas locadoras, mas é possível comprá-lo em algumas lojas online.

Naturalmente, o documentário poderia ser suficiente ao espectador, pois se trata de um documento-verdade clássico e sério. Mas, o filme ganha importância na medida em que aborda a fase do glamour das Beale, nos anos 30, e conta toda a trajetória até a fase decadente do lixo e do esquecimento, revelando como aconteceu a incompreensivel curva pessoal-social descendente de ambas as Beale. Isso não está, e nem poderia, no documentário. Esse talvez seja um dos raros casos em que um filme é necessário depois que um documentário sobre o tema foi feito. Da fase em que eram personalidades até se tornarem personagens há um período de 40 anos, mas a fase crítica começa mais especificamente com a morte do pai de Little Edie, de quem sua mãe estava divorciada. Foi então que começaram os altos e baixos financeiros, emocionais, afetivos, as carências seculares e a interprisão entre as duas se consolidou.

No filme sabemos que Big Edie teve dois outros filhos, cujos nomes não são mencionados por ela no documentário. Na faixa comentada no documentário, uma das produtoras explica que a relação entre ela e os filhos nunca foi próxima e, com o isolamento com a filha em Grey Gardens, ela simplesmente os apagou da memória. Eles tampouco tentaram qualquer aproximação no período das filmagens. Viviam no sul dos Estados Unidos na época em que a mãe e a irmã eram assuntos nos jornais de Nova Iorque.

Outro ponto alto do filme é a atuação de Jessica Lange e Drew Barrymore, ambas aclamadas e presentes no Globo de Ouro deste ano. A maquiagem para mostrar o envelhecimento ao longo de 4 décadas de história também é algo notável. Fernanda Torres, no documentário de Eduardo Coutinho, Jogo de Cena, diz que representar um personagem real é bem mais difícil do que um fictício, e por boas razões ela reconhece isso. Quando se tem um modelo vivo, qualquer representação parece aquém da realidade. Mas, a adapatação para as telas de Big e Little Edie é um show a parte. Drew Barrymore encarna a socialite de corpo, alma e voz - a entonação pitoresca e inesquecível de Little Edie ganha vida extra na voz de Drew. Impressionante. Assim como o é no aspecto visual. A mesma qualidade encontramos no trabalho de Jessica Lange, que também canta com ótima voz, como a personagem real. Bravo!

O filme completa o documentário dos irmãos Maisles. Vale a pena ver as duas obras para tentar entender, talvez em vão, alguns enigmas da natureza humana os quais norteiam a vida dessas duas mulheres incríveis.




segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Assustadoramente Bom

A história de Jogos Sinistros, o filme do francês Laurent Tuel, surpreende por várias razões: primeiro, por ser francês - a França resiste à espiritualidade pública desde os tempos de Alan Kardec, e mais recentemente das descobertas do físico Jean Charon, e raros são os filmes do gênero realizados por lá; e segundo, pelo realismo do plot, núcleo do enredo, apesar de, para muitos, parecer o de uma realidade estapafúrdia. Embora o título pareça tendenciosamente assustador e macabro, a trama mostra uma série de fenômenos extrafísicos possíveis, já narrados em depoimentos de experiências pessoais e estudos paranormais os mais diversos - clarividência, psicofonia, clariaudiência, possessão, assimilação simpática, bagulho energético, materialização, manipulação assediadora, morfopensene patológico (padrão de campo energético doentio), além de bons exemplos do que ocorre quando perdemos o mando de campo do nosso padrão energético.

O filme conta a história de uma família bem estruturada e financeiramente privilegiada, que vive num luxuoso apartamento de um bairro parisiense, quando recebe a visita de um casal de idosos, antigos moradores do local. Com a intenção de recordar os dias em que viveram no apartamento, aquele par acima de qualquer suspeita vasculha os cômodos à procura de lembranças da época de criança. A partir daí os fatos começam a eclodir na rotina aparentemente tranquila da família. Inspirado em filmes como "O Iluminado" de Kubrick e "Os Outros" de Amenabar, Jogos Sinsitros constrói o drama sobre uma linha inicialmente psicológica, a qual, de forma interessante, atravessa aos poucos o limite das dimensões física e extrafísica. As cenas exibem um pesadelo crescente, quando a família passa a viver atormentada por visões assustadoras, vozes sinistras, atos de violência doméstica, tentaçõe sexuais inexplicáveis e até suicídio. Na medida em que os acontecimentos sombrios ganham a nova realidade, a loucura parece irreversível, promovida por uma perda de mando de campo energético de todos os habitantes da casa. No que muitos críticos não conseguiram enxergar realidade, por força de uma análise aquém das variáveis extrafísicas, podemos ver a condição assustadora da limitação consciencial em que as personagens se encontram.

Na grande tela, a construção do espanto, no entanto, suscita um estado de alucinação coletiva de uma forma tão lenta e furtiva que, surpreendentemente, nos pegamos inseridos em experiências já vividas, as quais, de alguma forma, têm relação com o drama da história. O filme evoca a fragilidade promovida por uma autodefesa energética precária, a vulnerabilidade dos desavisados sobre a vida multidimensional e a necessidade de um estado de alerta constante nas nossas interrelações diárias, no que diz respeito às influências energéticas negativas. Percebemos aqui o quanto, às vezes, andamos à deriva feito náufragos do asfalto, presas fáceis para assediadores de toda sorte. Não precisamos de muito estudo para analisar tal fragilidade. Basta apenas garimpar na memória todos os momentos em que decidimos fazer coisas que não queríamos, com consequências desastrosas, as ocasiões em que tivemos mudança súbita de humor sem explicação aparente, os eventos que nos fizeram entrar em loop pessoal, com depressões deslocadas e tendências suicidas que desaparecem tão rapidamente quanto aparecem.

Se analisarmos todos esses eventos do dia-a-dia, vamos observar assustados o quanto vivemos coisas que não condizem com o nosso padrão normal de comportamento, o quanto pensamos fatos que não fazem parte da nossa memória pessoal, mas com a qual, de alguma forma, criam-se conexões. A imiscuidade energética é tão comum e presente na nossa rotina pessoal que, se tirarmos pensamentos e sentimentos que sofrem algum tipo de interferência energética, ficamos apenas com 2% de ações autênticas. Assustador.

Jogos Sinistros mostra uma realidade que não queremos ver, posto que, se observada de forma séria, nos leva diretamente aos pontos fracos da nossa condição energética e da maneira equivocada com que nos relacionamos com o mundo. Apesar da crítica não ter recebido bem o filme, considerando-o o irmão pobre dos seus ícones de inspiração já citados acima, a experiência de assistí-lo vai, certamente, levantar algumas questões para reflexão e fazer o espectador evitar a inutilidade de assistir a um filme sem considerar os aspectos multidimensionais das tramas - sabemos, entretanto, não apenas aquelas expostas nas telas, mas, sobretudo, na nossa vida pessoal.







quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Educação no Cinema III

Uma Mente Brilhante mostra a história real do matemático John Nash, gênio precoce da Universidade de Princeton, que se destacou elaborando uma teoria revolucionária, a primeira a atualizar a área desde Adam Smith. Nash é um nerd que passa os dias trancafiado na biblioteca de Princeton, escrevendo fórmulas matemáticas enigmáticas, sempre à procura da "idéia original" que o separaria da mesmice do resto dos matemáticos mortais. Mas, enfim, o reconhecimento chega com a publicação de sua teoria sobre o "equilíbrio," e, em seguida, um emprego em Washington, como decifrador de códigos. Em plena Guerra Fria, Nash é chamado no Pentágono para decifrar um código russo recém capturado, e, em questão de horas, ele consegue descobrir padrões e coordenadas importantes apenas olhando para o código. Gênio. Contudo, cada vez mais paranóico e vendo padrões e conspirações soviéticas em todos os lugares, John Nash finalmente perde o controle sobre a própria mente e torna-se completamente esquizofrênico, sendo internado em um hospital psiquiátrico. Nesse momento, o filme ganha uma nova dimensão. Ou melhor, duas, pois não sabemos se o que o personagem principal vê é realidade ou fruto da sua imaginação. É aqui que entendemos a relação patológica multidimensional da genialidade, pois, a exemplo de outros grandes, como Mozart, Einstein, Van Gogh, Newton, Baudelaire, genialidade e loucura nunca tiveram um limite muito claro ente elas. A parte final é também a parte dos questionamentos: Nash estava realmente trabalhando para o governo? Seu trabalho procurando padrões em revistas é realmente de segurança nacional ou não passa do delírio de uma mente desequilibrada? E, mais pertubador ainda, seriam alguns dos personagens com o qual já nos familiarizamos reais ou são frutos da imaginação de Nash? Quem é real e quem é imaginário? Oh dear. Bem, sem inspirar algumas perguntas ao final nenhum filme vale a pena. Uma Mente Brilhante é... brilhante.

Usando a Filosofia para analisar O Clube do Imperador, Hobbes e Russeau nos bastariam, com as seguintes perguntas: o homem nasce bom e a sociedade o corrompe ? Ou ele nasce mal e a educação e o convívio social possibilitam-no a fingir uma bondade que não tem ? Ou mesmo, qual seria o verdadeiro poder da educação na vida de um homem? Sabemos que limitar o questionamento sobre a natureza do homem na dicotomia bem e mal simplificaria a complexa teia pluriexistencial humana. Mas, aqui tal emprego tem fundamento, pois é baseado nisso que o plot do filme se desenvolve. Na verdade, O Clube do Imperador vai um pouco além dessa discussão, pois estende o questionamento num campo de dilemas éticos, no qual a idéia do homem criado e moldado ao estilo soldado romano, onde a disciplina, a ética, e os valores morais, bem como a busca pelos ideais de cavaleiros estão presentes, desencadeia toda a importância do drama. O cenário é uma escola de alta-elite, engajada na formação de líderes e de grandes homens de negócios. Os alunos aqui já estão com seu lugar ao sol e o que terão que fazer na escola, na verdade, é apenas manterem-se na ascensão social, longe do risco de qualquer desvio. Quando o garoto filho de um influente senador chega para se integrar ao grupo escolar, ele já vem com um inicio corrompido, com uma "natureza" comprometida. Cria-se a partir de então, os dois lados da situação emblemática. Na visão do professor e de parte da turma, seus modos são ultrajantes, mas, na visão do pai, são perfeitamente normais e em nada contraria os princípios éticos e morais existentes no padrão da maioria das pessoas, ou no padrão social "vigente." A questão mais interessante do filme é, como um indivíduo, com seus valores e princípios comprometidos, pode corromper os valores vigentes do meio, sem suscitar uma discussão sobre a fragilidade dos valores sociais pré-estabelecidos. o garoto do filme aplica de forma brilhante a teoria da duplicidade de Maquiavel. Ele adota uma personalidade para, na verdade, controlar e se manter no poder, ao ponto de fazer o professor ir contra seus princípios éticos e morais alterando uma prova. Sem duvida vivemos em um mundo no qual somos vulneráveis ao auto-engano, enganamos o outro ou somos enganados. A lisura de caráter envolve um autoconhecimento sério, o qual nem sempre estamos dispostos a encarar, pois ele significa abrir mão dos ganhos secundários, abandonar os pactos mórbitos e as autocorrupções seculares, além de promover mudanças de comportamento, princípios e valores morais. Na esfera filosófica, Platão sabia disto e Buda também, enganar é uma das mais fortes e natas características humanas.

Toda a ação de Entre os Muros da Escola se passa nas salas, nos corredores e nos páteos de um colégio nos arredores de Paris, ao longo de um ano letivo. Mas o filme do francês Laurent Cantet extrapola os muros e serve de cenário para a realidade de um país com desequilíbrio social, multicultural, onde negros e árabes não fazem parte do corpo letivo, só da equipe de faxina. É um drama e tanto, que se desenvolve em algumas camadas de seriedade: algumas superficiais, outras mais profundas, como, por exemplo, como a França lida com seus cidadãos saídos de ex-colônias. O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes 2008 e tem muito a dizer também sobre a relação professor-alunos de modo geral, independente do contexto social. A relação de poder se desenrola em sua essência, sem máscaras, e mostra que, por mais que um professor tente se aproximar de seus estudantes, sempre vai existir uma barreira intransponível que os distancia. O professor protagonista busca em vão uma cumplicidade com seus alunos. O grupo heterogêneo traz imigrantes africanos, que trazem para a sala um histórico familiar em frangalhos, um menino chinês, que se esmera em matemática, mas vai mal na aula de francês, entre outros. O modo como François conversa com a classe dá a entender que, num ambiente tão culturalmente complexo, a única maneira de atingir o alunado é falando individualmente com ele. Mas o filme mostrará que, antes de mais nada, impera ali a hierarquia. O filme foi resultado do livro de François Bégaudeau, o professor protagonista, um ator não-profissional, que escreveu um livro contando suas experiências em sala de aula e se tornou best-seller na França. A bra autobiográfica ganha peso justamente por esse fato: ela surge de fatos, de histórias reais. Os alunos são todos atores amadores e interpretam a si mesmos. Isso dá ao filme uma força extra, pois vamos da ficção ao documentário sem perceber.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Pacto Mórbito

Segundo a Wikipedia, os Três Macacos Sábios ilustram a porta do Estábulo Sagrado, um templo do século XVII localizado no Santuário Toshogu, na cidade de Nikko, Japão. Sua origem é baseada em um trocadilho japonês. Seus nomes são mizaru (o que cobre os olhos), kikazaru (o que tapa os ouvidos) e iwazaru (o que tampa a boca), que é traduzido como não ouça o mal, não fale o mal e não veja o mal. Sobretudo se esse "mal" está dentro da sua própria casa.

O cinema moderno da Turquia traz o cinematograficamente belo 3 Macacos, do diretor Nuri Bilge Ceylan, que venceu o prêmio de melhor diretor do Festival de Cannes de 2008, e que, a partir do qual, ganhou notoriedade internacional.

O filme aposta bem sucedidamente em seus planos, na sua cor, no seu clima, e, sobretudo, na carga dramática dos atores, todos capazes de transmitir num único olhar as emoções densas e complexas que suas personagens exigem. 3 Macacos é, assim, mais cinema do que filme. Eu explico. Uma história de traição em si pode não ser inédita e facilmente você já deve ter cruzado por muitas. Mas quando uma história de traição ganha uma fotografia rara, atores magistrais e um roteiro sutil e elegante, deixamos o filme para olharmos a obra cinematograficamente falando. E nisso 3 Macacos é obra prima. É cinema de primeira classe.

O grande trio de intérpretes, Yavuz Bingöl, Hatice Aslan e Ahmet Rifat Sungar, respectivamente pai, mãe e filho, e o político, Ercan Kesal, têm performances memoráveis.3 Macacos conta a história de uma família pobre, corrompida por uma proposta indecente de um político local. Tendo atropelado um homem e fugido do local do acidente, ele oferece dinheiro e convence o seu motorista a assumir o crime para não enfrentar um escândalo na véspera de uma nova eleição. A soma de dinheiro oferecida superaria o tempo em que o motorista passaria atrás das grades, mas pior do que a perda da liberdade seria a perda da sua mulher, que, nos meses da sua ausência, se entrega a um romance com o próprio político, patrão do marido.

Seduzido pela mulher do seu motorista, o político embarca na aventura e o caso acelera a desagregação moral do núcleo familiar, que já nutria traumas do passado, como a morte de um filho quando criança, que aliás aparece no filme em duas cenas notáveis, antológicas. Sem mutos diálogos, o filme exige uma participação atenta do espectador para que nada seja desperdiçado, pois aqui temos uma obra para ser degustada e, claro, seriamente analisada.

Oa ganhos secundários são, a priori, a razão da criação do pacto mórbito. Mas a questão se estende quando os ganhos secundários envolvem sentimentos e valores essenciais e universais, como amor, admiração, respeito, união, lealdade etc. Nem todos estão prontos para uma confrontação, assim como nem todos estão aptos a confrontar. No impasse reside a dúvida, o que pode fazer o bola-da-vez clefar, mas não devemos julgá-lo. O que estar por acontecer tem um força incrível e apoiada em algum código de ética a resposta surge mais cedo ou mais tarde, as peças, naturalmente, se reagrupam e tudo se reencaixa, por mais dolorosa que seja a via através da qual todo o processo ocorrerá. Toda omissão deficitária acarreta uma reação em espiral que, naturalmente, traz de volta ao ponto de partida a ação não realizada. Não vi, não ouvi, não falei. Um dia, certamente, a casa cairá, e, senão literalmente, a reconstrução pessoal será inevitável.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Festival do Rio: Começa a Festa do Cinema com 310 Filmes de 60 Países


A edição 2009 do Festival do Rio estará em toda a cidade de 24 de setembro a 8 de outubro. O Festival do Rio é o maior festival de cinema do Brasil e da América Latina.

No período do evento, 310 produções chegam às telas cariocas oriundas uma grande parte delas de outros grandes festivais pelo mundo, como Cannes, Sundance, Veneza e Berlim. Filmes inéditos no Brasil confirmam a importância do Festival do Rio não só por assumir a função de vitrine do cinema latino-americano, como também por sua representação definitiva do cinema independente no país. O púbico verá longas e curtas metragens, vindos de mais de 60 países, nas mostras Première Brasil, Panorama Mundial, Expectativa, Limites e Fronteiras, Mostra Geração, Dox, Midnight Movies, Mundo Gay e Pocket Films, entre outras.

A Première Brasil, coração do Festival do Rio, traz ao público e ao mercado internacional cerca de 60 filmes brasileiros inéditos, em sua grande maioria em premiere mundial. No Pavilhão do Festival, realiza-se também o Cine Encontro, discussões do público com os diretores e atores da Première Brasil. O público terá ainda a chance de participar de outros debates sobre o mercado cinematográfico e ter acesso gratuito ao lounge de games baseados em grandes filmes.

O Festival do Rio consolida também sua posição como plataforma de encontros de negócios para toda a área do audiovisual. Durante duas semanas, seminários, mesas redondas e encontros de projetos nas áreas de distribuição, co-produção e tecnologia enchem as salas do RioMarket, no pavilhão do Festival do Rio. Os principais executivos da indústria vêm ao Rio durante o evento, para encontrar novos parceiros de negócios e estabelecer co-produções com o cinema brasileiro. Além disso, têm a chance de fazer "networking" e conhecer mais de perto o Brasil, o 9º mercado audiovisual mundial. A Prefeitura do Rio de Janeiro, em 2009, volta a se juntar aos grandes patrocinadores do Festival do Rio, juntamente com a Petrobras e a Oi.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Educação no Cinema II
















Neste bom exemplar de filme-pedagógico, não só para alunos mas sobretudo para professores, Hilary Swank interpreta Erin Gruwell, conhecida como professora G pelos seus alunos da sala 203, de uma instituição de ensino médio em Long Bech, Estados Unidos. Já tivemos outras histórias parecidas, como a do clássico Ao Mestre, Com Carinho e no mais recente Mentes Perigosas, com a Michelle Pfeiffer. Mas Escritores da Liberdade oferece um sobressalto a mais ou um plot diferenciado, a palavra da moda. Talvez a interpretação da Hilary também possa ser esse algo diferenciado. A história aqui afeta mais por estar mais atualizada. Não é nada fácil trabalhar como professor numa escola pública de um bairro pobre, nem nos EUA nem em qualquer outro lugar. Não pela dificuldade de educar dentro da sala de aula, mas, sobretudo, pela complexidade de oferecer uma educação que deve antes de mais nada moldar culturalmente os indivíduos, equalizá-los socialmente, reciclar suas atitudes e, enfim, oferecê-los uma melhor opção de sobrevivência às vicissitudes do meio em que vivem.















Já na obra de Gus Van Sant, Gênio Indomável, que traz a ótima parceria Damon-Williams, vemos um cérebro inteligentemente blasé, mais propenso ao descanso e à boa vida do que aos desafios do mundo acadêmico, seduzir um ingênuo professor, que se enche de esperança ao acreditar que pode recuperar o errante gênio matemático, com passagens pela polícia e inúmeros casos mal resolvidos consigo mesmo. Por isso, ele desafia terapêutas, até render-se a um deles, com quem passa a se identificar. Mas os resultados não parecem incliná-lo à carreira profissional. Ele não está nem aí para o fato de ser um gênio.















Meu Mestre, Minha Vida
não descarta a carga dramática de um cenário caoticamente social em que estão inseridos os alunos fora da escola. Agora estamos em Nova Jersey, numa escola com sérios problemas de violência e tráfico de drogas. Usando métodos pouco ortodoxos, algumas vezes violentos, o professor transforma os alunos, inclusive conseguindo que sejam aprovados no exame do final do ano realizado pelo governo estadual. Já o chinês Nenhum a Menos (ver resenha do filme em datas anteriores neste blog) fascina pelo primor com que o excelente diretor Zhou Yimou conta a história da professorinha que recebe a missão de cuidar de uma turma de alunos, de uma escola no interior da China, cujo maior desafio é não deixar com que ninguém abandone a sala de aula na ausência do professor titular. A situação precária do lugar, a falta de experiência em ensinar da professora e a pobreza campesina se tornam, enfim, ingredientes indispensáveis para fazer desse filme uma jóia rara do cinema, ao mostrar da forma mais simples que os seres humanos, em sua essência, oferecem as maiores lições de vida.

Enigmas Humanos

Por muito tempo a obra de Herzog acalorou discussões a respeito da prática social condicionada, o convívio social como construtor da identidade psicológica do homem, o conflito entre consciência e sociedade, além de infinitos paralelos com correntes filosóficas de grandes pensadores. Mesmo com o grande escopo filosófico que o filme apresenta é possível olhar além das imagens na tela para enxergarmos com maior abrangência a condição na qual estamos inseridos em sociedade: um repositório passivo de convicções e verdades pré-determinadas, as quais tendem a nos levar mais à inabilidade do pensamento livre do que à realização de qualquer tipo de gestação intelectual, com base nas nossas experiências pessoais.

Herzog sempre teve interesse em temas exóticos que flertam com reflexões de nível psicanalítico, religioso, anteropológico, poético etc. Em O Enigma de Kaspar Hauser, há uma espécie de ápice reflexivo que nos guia, através da observação externa, aos recônditos da experiência pessoal. O filme inevitavelmente suscita Nietszche ao flertar com o conceito sobre verdade e mentira no sentido de que, em sociedade, recebemos a influência da linguagem num histórico cultural no processo de formação da percepção da realidade. Isto é, a informação a qual somos submetidos desde muito cedo afeta a nossa capacidade de compreender os fenômenos da realidade. Antes mesmo de termos qualquer opinião formada sobre tais eventos, as verdades se tornam absolutas e nos chegam sob a forma da imposição.

No filme, isso fica claro numa das cenas em que religiosos tentam incutir em Kaspar Hauser a idéia de Deus, obrigando-o a acreditar na sua existência sem qualquer evidência que a torne plausível. "Deve admitir o mistério da fé sem procurar entender," disse-lhe um dos padres efusivamente. O personagem central resiste bravamente ao ataque dos clérigos e sai aparentemente ileso da conversa. De outro modo, ele teria sido "vítima" da limitação do pensamento e sucumbido diante da tentativa de buscar em si o significado da idéia em função de uma definição restrita.

A partir da idéia da formação do ser humano em sociedade, a questão se desdobra da seguinte forma: Kaspar Hauser sofria de um déficit intelectual para com a sociedade, uma vez que não teve ele a oportunidade de aprender sobre o mundo à sua volta pelas vias normais do ensino tradicional ? Ou a percepção natural da realidade se torna mais aguçada pelo fato de não sofrer limitação de pensamento, nem sacrificar o sentido dos conceitos adquiridos através da experiência pessoal ?

Em outra cena do filme, um professor testa sua inteligência com a seguinte pergunta: "imagine que há uma aldeia onde só existem pessoas que mentem e outra onde só existem pessoas que falam a verdade. Desta aldeia, sai uma estrada que leva a você. Chega um viajante e você quer saber se ele veio da aldeia onde falam a verdade ou da aldeia ondem mentem. Para resolver esse problema com lógica só há uma pergunta a fazer ao viajante. Qual é esta pergunta ?" O professor espera alguns minutos sem que Kaspar Hauser pronuncie uma palavra. Então ele mesmo resolve responder. A pergunta que teria que ser feita é "você vem da aldeia que mente ?" Segundo o professor, com a dupla negação da resposta, ele poderia forçar o viajante a dizer a verdade e revelar sua identidade, usando a mais fina lógica. Mas Kaspar Hauser teria uma outra pergunta, para espanto do professor, que imediatamente protesta, "segundo as leis da lógica não há outra pergunta." Mas Kaspar insiste. "Sim! Existe outra pergunta," afirma ele com convicção. "Eu lhe perguntaria se ele é uma rã. Aquele que afirmasse ser uma rã seria da aldeia que mente." Lamentavelmente o professor não aceita a lógica da vida. "Não posso admitir isso," diz ele. "Isso não é lógica; é dedução. Como professor de lógica e matemática, não posso aceitar a sua pergunta."

O Enigma de Kaspar Hauser conta a história de uma pessoa que, logo após o nascimento, foi mantido escondido em um celeiro, privado de qualquer contato com o mundo externo até completar 18 anos. Quando é retirado, não sabe falar nem andar, sendo assim impossibilitado de articular raciocínios, pois estes são feitos através da linguagem, mesmo que em pensamento, e de interagir fisicamente com o novo ambiente. É ensinado a andar, e a reproduzir um punhado de palavras cujo significado ignora. O filme mostra a reação da sociedade ao lidar com um indivíduo nesse estado, possibilitando vários níveis subjetivos de leitura sobre os fatos ocorridos durante o filme. A obra de Herzog é magistral no sentido de propor uma reflexão sobre as nossas próprias convicções e deixa uma inqueitante pergunta reverberando na nossa consciência. Se pudéssemos retirar da nossa mente tudo que aceitamos como verdade até hoje, sobraria alguma idéia original das nossas experiências pessoais ?