Bem-vindos ao Cinema & Consciência, um novo espaço para a difusão e a discussão do cinema brasileiro e internacional. Vamos falar de filmes ou documentários, discutir ética e estética do cinema, com enfoque nas pessoas, nos temas e nos fatos. Os comentários dos visitantes serão sempre bem-vindos.

Todos os textos neste blog são de autoria de Mário Luna, salvo aqueles em que a fonte for mencionada.
Críticas construtivas e sugestões em geral, envie e-mail para este blogger: cinemaconsciencia@gmail.com

"Não acredite em nada que ler ou ouvir neste blog. Reflita. Tenha as suas próprias opiniões e conclusões"





quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Enigmas Humanos

Por muito tempo a obra de Herzog acalorou discussões a respeito da prática social condicionada, o convívio social como construtor da identidade psicológica do homem, o conflito entre consciência e sociedade, além de infinitos paralelos com correntes filosóficas de grandes pensadores. Mesmo com o grande escopo filosófico que o filme apresenta é possível olhar além das imagens na tela para enxergarmos com maior abrangência a condição na qual estamos inseridos em sociedade: um repositório passivo de convicções e verdades pré-determinadas, as quais tendem a nos levar mais à inabilidade do pensamento livre do que à realização de qualquer tipo de gestação intelectual, com base nas nossas experiências pessoais.

Herzog sempre teve interesse em temas exóticos que flertam com reflexões de nível psicanalítico, religioso, anteropológico, poético etc. Em O Enigma de Kaspar Hauser, há uma espécie de ápice reflexivo que nos guia, através da observação externa, aos recônditos da experiência pessoal. O filme inevitavelmente suscita Nietszche ao flertar com o conceito sobre verdade e mentira no sentido de que, em sociedade, recebemos a influência da linguagem num histórico cultural no processo de formação da percepção da realidade. Isto é, a informação a qual somos submetidos desde muito cedo afeta a nossa capacidade de compreender os fenômenos da realidade. Antes mesmo de termos qualquer opinião formada sobre tais eventos, as verdades se tornam absolutas e nos chegam sob a forma da imposição.

No filme, isso fica claro numa das cenas em que religiosos tentam incutir em Kaspar Hauser a idéia de Deus, obrigando-o a acreditar na sua existência sem qualquer evidência que a torne plausível. "Deve admitir o mistério da fé sem procurar entender," disse-lhe um dos padres efusivamente. O personagem central resiste bravamente ao ataque dos clérigos e sai aparentemente ileso da conversa. De outro modo, ele teria sido "vítima" da limitação do pensamento e sucumbido diante da tentativa de buscar em si o significado da idéia em função de uma definição restrita.

A partir da idéia da formação do ser humano em sociedade, a questão se desdobra da seguinte forma: Kaspar Hauser sofria de um déficit intelectual para com a sociedade, uma vez que não teve ele a oportunidade de aprender sobre o mundo à sua volta pelas vias normais do ensino tradicional ? Ou a percepção natural da realidade se torna mais aguçada pelo fato de não sofrer limitação de pensamento, nem sacrificar o sentido dos conceitos adquiridos através da experiência pessoal ?

Em outra cena do filme, um professor testa sua inteligência com a seguinte pergunta: "imagine que há uma aldeia onde só existem pessoas que mentem e outra onde só existem pessoas que falam a verdade. Desta aldeia, sai uma estrada que leva a você. Chega um viajante e você quer saber se ele veio da aldeia onde falam a verdade ou da aldeia ondem mentem. Para resolver esse problema com lógica só há uma pergunta a fazer ao viajante. Qual é esta pergunta ?" O professor espera alguns minutos sem que Kaspar Hauser pronuncie uma palavra. Então ele mesmo resolve responder. A pergunta que teria que ser feita é "você vem da aldeia que mente ?" Segundo o professor, com a dupla negação da resposta, ele poderia forçar o viajante a dizer a verdade e revelar sua identidade, usando a mais fina lógica. Mas Kaspar Hauser teria uma outra pergunta, para espanto do professor, que imediatamente protesta, "segundo as leis da lógica não há outra pergunta." Mas Kaspar insiste. "Sim! Existe outra pergunta," afirma ele com convicção. "Eu lhe perguntaria se ele é uma rã. Aquele que afirmasse ser uma rã seria da aldeia que mente." Lamentavelmente o professor não aceita a lógica da vida. "Não posso admitir isso," diz ele. "Isso não é lógica; é dedução. Como professor de lógica e matemática, não posso aceitar a sua pergunta."

O Enigma de Kaspar Hauser conta a história de uma pessoa que, logo após o nascimento, foi mantido escondido em um celeiro, privado de qualquer contato com o mundo externo até completar 18 anos. Quando é retirado, não sabe falar nem andar, sendo assim impossibilitado de articular raciocínios, pois estes são feitos através da linguagem, mesmo que em pensamento, e de interagir fisicamente com o novo ambiente. É ensinado a andar, e a reproduzir um punhado de palavras cujo significado ignora. O filme mostra a reação da sociedade ao lidar com um indivíduo nesse estado, possibilitando vários níveis subjetivos de leitura sobre os fatos ocorridos durante o filme. A obra de Herzog é magistral no sentido de propor uma reflexão sobre as nossas próprias convicções e deixa uma inqueitante pergunta reverberando na nossa consciência. Se pudéssemos retirar da nossa mente tudo que aceitamos como verdade até hoje, sobraria alguma idéia original das nossas experiências pessoais ?

Nenhum comentário:

Postar um comentário