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Navegar é Preciso, Viver e Representar Não é Preciso
O décimo longa-metragem de Eduardo Coutinho, um dos maiores, documentaristas brasileiros, além de levantar a discussão sobre velhos temas das sessões de terapia, como representação e realidade, as máscaras da personalidade e os disfarces da auto-imagem, nos deixa um questionamento incômodo: quando estamos apenas representando ?Antes de falar sobre Jogo de Cena, seu novo filme, gostaria de falar sobre Eduardo Coutinho, porque sou um dos seus admiradores. Por força de trabalhos como Edifício Master, Peões, O Princpípio e o Fim e Santo Forte aprendi a gostar deste cineasta que tem também o clássico da década de 70 Cabra Marcado para Morrer no seu curriculum vitae. Depois de um começo de carreira entre a ficção e o documentário, Coutinho opta pela segunda linha de criação, comprometido com um acerto de contas com a História. Recentemente, realizou cinco filmes em seis anos! - Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2002), Peões (2004) e O Fim e O Princípio (2005). A sensibilidade de Coutinho para ouvir pessoas comuns é uma aula para alguém com planos de ser documentarista como eu. Coutinho utiliza essa ferramenta como poucos e o faz como que buscando sempre novos limites e sólidas técnicas, como a que usou nesse último trabalho, Jogo de Cena. Fruto de uma laboriosa reflexão, em Jogo de Cena Coutinho não apenas nos mostra que a representação é uma característica indissociável da nossa natureza humana, como também que somos todos bons artistas da realidade.
Com um anúncio de jornal, o diretor convida mulheres a darem depoimentos contando suas histórias de vida. Ao final, 83 mulheres atenderam ao anúncio. Depois, apenas 23 foram selecionadas e filmadas no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro. Três meses depois, algumas atrizes receberam o texto e o DVD das entrevistadas escolhidas para interpretar, a seu modo, as histórias contadas. No produto final, então, Coutinho coloca os dois depoimentos, tanto o real como o interpretado, e deixa para o espectador descobrir de quem é, de fato, a história que está sendo contada, criando assim um jogo de cena onde não sabemos onde começa a interpretação e termina a realidade. O diretor acaba criando um longa que trata de inúmeros assuntos, como preconceitos, relacionamentos mal sucedidos, perdas, exclusão social e gravidez na adolescência, além, claro, das difíceis relações familiares. Muitos depoimentos têm a função de confundir o público, até mesmo as atrizes famosas contam suas histórias reais e as menos famosas se misturam entre as anônimas, de maneira que nunca temos certeza quem ali eram as atrizes e quem eram as entrevistadas. O interessante é ver, por exemplo, como estas acabam mexendo com as atrizes (as famosas sobretudo!) de forma que elas nunca conseguem ser indiferentes ao texto. No time das atrizes famosas temos 3 nomes de peso: Andréa Beltrão, Marília Pêra e Fernanda Torres, que surpreende com um dos melhores momentos do filme. Insatisfeita com sua performance na interpretação de uma das entrevistadas e inconformada por não atingir o nível ideal de representação, Fernanda se desmonta diante de Coutinho. "Incrível," ela repete várias vezes quase como que num transe artístico, pois ela mesma não acredita naquele obstáculo, e diz uma frase muito boa, "na ficção, é mais fácil construir uma personagem e se sair bem porque o nível de exigência no medíocre é satisfatório. Mas quando essa personagem é real, você tem sempre um exemplo a seguir, e ele está ali, esfregando na tua cara o nível em que você deveria estar." Andréa Beltrão também tem uma participação marcante, quando ela chora quando não esperava chorar e diz ao Coutinho que foi surpreendida pela força do texto.
As possibilidades de interpetação oferecidas por Coutinho são muitas e o documentário está mais interessado em levantar questões do que em respondê-las. A variedade de tipos que desflam diante da camera mostra uma diversidade de assuntos tratados de maneira direta e sincera, mas o ponto mais marcante do filme fica mesmo por conta da reflexão sobre a representação. Quantas vezes estamos representando nas situações do dia-a-dia, com personagnes do nosso imaginário pessoal, ou através dos nossos sistemas de crenças, que cultivamos por inúmeras razões ? Todas as nossas representações dizem um pouco sobre nós mesmos, mas nos afastam da realidade e de tudo que ainda precisamos melhorar como pessoas. Desenvolve-se de uma necessidade de fuga da realidade para imergir num mundo idealizado. Mas toda essa criatividade de ser outra pessoa cansa com o tempo, sobretudo quando o reconhecimento não vem, e nem os benefícios. A representação é uma espécie de doação sem limites nem vantagens, e flui na via do auto-engano. A crença numa realidade alheia à nossa é uma patologia delicada e de difícil acesso para quem quer ajudar numa tomada de consciência.
Quando o filme termina, me coloquei no papel de uma das atrizes, tentando representar a vida de outras pessoas. Me perguntei quantas vezes tentei representar alguém que não sou. Essa reflexão foi inevitável. Assumimos geralmente posturas que condizem muitas vezes com o que fazemos, mas não conseguimos ser nós mesmos nessas funções e, então, representamos alguém que não somos, até que esse papel se torna insuportável e nos leva à frustração, à depressão e à falência como pessoa. Qual é o seu valor na verdade ? Quanto custa ser quem não somos ? Pode custa uma vida inteira.
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