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quarta-feira, 28 de abril de 2010

O Sacrifício de Andrei Tarkowski


Por José Marçal Gonçalves dos Santos

O filme O Sacrifício (Offret, Suécia, 1986) foi a última realização que o cineasta russo Andrei Arsensevich Tarkovski (1932-1986) ofereceu ao público antes de falecer aos 54 anos de idade, em dezembro de 1986.

O filme conta a história de um eventual encontro em família para comemorar o aniversário de Alexander (Erland Josephson), professor universitário e ex-ator de teatro que vive sob a angústia que o afastou dos palcos. No encontro, todos são surpreendidos pelo anúncio na televisão acerca do lançamento de um míssil nuclear e a instrução de que todos se mantenham em suas casas até uma possível segunda ordem. A angústia de Alexander, que reúne filho, filha, esposa e amigos em sua casa, o oprime a ponto de dispor-se a um sacrifício a fim de salvar sua família e seus amigos.

“O filme é uma parábola”, passível a muitas interpretações, e que se propõe a discutir a humanidade e a cultura moderna em meio à década de 1980. Especulando sobre o tema da catástrofe nuclear, reúne suas críticas à civilização tecnológica, ao estilo de vida de sua cultura sob o real potencial de autodestruição do planeta pelo ser humano. O filme lança seu olhar, contudo, na direção não exatamente de uma resposta moral ou de uma ética geral; ao contrário, encarna-se no dilema pessoal do protagonista e sua atitude de auto-sacrifício cuja motivação essencial é o amor e mesmo a sua carência. Nas palavras de Tarkovski:

"O que me impeliu foi o tema da harmonia que nasce apenas do sacrifício, da dupla dependência do amor. Não se trata de amor mútuo: o que ninguém parece entender é que o amor só pode ser unilateral, que não existe outra espécie de amor, que, sob qualquer outra forma, não é amor. Se não houve entrega total, não é amor."

Andrei Tarkovski nunca escondeu a intencionalidade que afeta sua criação, de alcançar e registrar em sua lente uma observação da vida, cujo critério de autenticidade e verdade é a alma humana. Com seus filmes, Tarkovski buscou construir uma relação entre obra e público, convidando a uma comunicação de experiências cuja verdade é, por isso, essencialmente amorosa e relacional. A originalidade de Tarkovski está naquilo que ele chamava de “ligação orgânica” entre autor e obra e o modo que encontrou para compartilhar de si mesmo por meio de seus filmes.

À medida que fez cinema, vivenciou novos nascimentos, recriou sua própria memória, sua infância, sua geração numa nova realidade, a obra de arte. Por isso, ele defendia a idéia de que o cinema, como toda arte, tem uma função espiritual de “preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem”. A seu modo, ele entende que esse “cultivo de si” por meio da arte é possibilitado pela mediação comunicativa da arte, cuja intenção expressiva entende sempre como um exercício amoroso de compartilhar de si. Como vemos no início e no fim de O Sacrifício: “no princípio era o verbo”, um estado de relação e comunicação de almas em que, porém, não necessariamente algo precisa ser dito, mas pode ser compartilhado como presença apenas.

Tarkovski desenvolveu sua arte ao longo de pouco mais de vinte anos, perfazendo uma obra de sete longas-metragens, dois documentários e um curta-metragem que o diplomou na faculdade de cinema, além de algumas participações como roteirista e ator. De certo modo, uma obra modesta em números, mas reconhecida pela originalidade estilística, desenvolvida também sob um cuidado teórico-crítico de busca por uma forma autêntica de arte cinematográfica. A diretriz teórica para essa autenticidade, por sua vez, Tarkovski encontra na noção de “tempo impresso”. Assim, para ele, não é o movimento e a concatenação de acontecimentos numa narrativa que define o cinema como arte da observação, mas o tempo como experiência subjetiva de participação e contemplação, encontro e estranhamento com a realidade mediada pela arte da imagem em movimento. Concebendo o tempo como matéria-prima do cinema, Tarkovski autocompreende-se, ao lado de outros cienastas como um poeta cuja arte cria universos próprios sintetizados por instantes esculpidos em imagem em movimento.

Os filmes de Tarkovski, por conseguinte, exigem um público aplicado. Além de tempo – em média seus filmes têm em torno de 3 horas de duração – também requerem uma atitude de entrega e participação criativa. A cena de abertura de O Sacrifício descrita acima, por exemplo, tem em torno de seis minutos, coincidindo exatamente com o tempo da música que conduz a cena. O filme inicia convidando a uma dubiedade entre o “presente” que o rei mago traz ao Jesus-Criança de Da Vinci e o “sacrifício” do Cristo que ressoa na música de Bach. A ausência de movimento pela falta absoluta de ação dos personagens literalmente, ou melhor, pictoricamente fixados à tela, causa um primeiro estranhamento que, se aceito pelo espectador, lhe abrirá as portas para a história.

"Essas revelações poéticas, todas elas válidas e eternas, testemunham o fato de que o ser humano é capaz de reconhecer a imagem e semelhança de quem o criou, e de exprimir este reconhecimento." A. Tarkovski em Escupir o Tempo.

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