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segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A Festa de Nachtergaele

Um homem toma um ônibus que parte do terminal. Ele veste um casaco. Por debaixo do casaco ele tem uma bomba. Em seus bolsos ele guarda pregos, bolas de chumbo e veneno para rato. O ônibus está quase lotado e dirige-se para o centro da cidade. O homem se senta ao lado de uma casal de meia idade. O casal parece ter ido às compras e agora fala da geladeira nova. Aos poucos mais pessoas tomam o ônibus, que agora está com todos os assentos ocupados. Há pessoas viajando em pé. Motivado pela fé, ele acionará a bomba quando o ônibus chegar na próxima parada. Motivado pela fé num Deus onipotente e onipresente, ele chegará ao paraíso por esse ato heróico. Mais ou menos assim começa o livro, O Fim da Fé, de Sam Harris.

Mas o que o homem faz com a sua fé ? O homem, em sua ampla maioria, não sabe viver sem fé. Lembro de uma frase o diretor de cinema polonês, Krzysztof Kieslowski, que disse, "sempre tenho contato a história do homem que, por achar difícil se orientar neste mundo, não sabe como viver." A fé se torna, assim, uma bússola através da qual o homem guia seus princípios e determina seu destino. A falta da fé tanto em algo como em alguém jogaria este mundo num caos moral, porque uma trajetória de vida baseada no pensamento do próprio homem é uma hipótese impensável - até aqui. Ele precisa da doutrina, da moral alheia e de alguém que represente essa moral. Não há massa crítica, porque, historicamente, nunca pudemos alcançá-la através das religiões. A manipulação espiritual sempre norteou a intencionalidade doutrinária eclesiástica e se ramificou em seitas, misticismos, comunidades esotéricas, igrejas protestantes, assim como em tantas outras religiões que se multiplicam a cada dia em busca de dízimos e promessas de paraíso. Se retirarmos todos os pensamentos incutidos no homem religioso, não restará muito pensamento que possa ser considerado dele.

A liberdade é uma ameaça e o que se vê é que o homem já nasce fadado a ser comandado de alguma maneira, porque, não sabendo viver, ele precisa de um guia, qualquer um serve. O filme A Festa da Menina Morta, de Matheus Nachtergaele, não fala apenas da fé, mas da necessidade de haver um santo para recriá-la e mantê-la acesa. A busca cega pelo ícone espiritual exime o mesmo dos pecados da sua condição humana. No filme, vemos um santo real, emocionalmente desequilibrado, sexualmente desviado, vulnerável em suas convicções e atentado por seus próprios medos e fraquezas. Sabendo que este contexto não foge à realidade, não é difícil sentir uma certa compaixão pela humanidade.

A história centra-se no poder do misticismo numa comunidade perdida nos confins da Amazônia, vivendo num Brasil ainda desconhecido, arcaico, primitivo e feroz. Ali, praticamente toda a população vive em função da crença nas previsões anuais de Santinho, o personagem principal, uma espécie de beato com inúmeras características profanas, como o relacionamento dúbio com o próprio pai e os constantes destemperos histéricos que tem com sua equipe de trabalho em casa. O evento na comunidade acontece há 20 anos. Santinho ganhou seu status de santo ainda criança, quando recebeu de um cachorro os restos do vestidinho de uma criança desaparecida. O episódio foi interpretado como um sinal de divindade. Além disso, ele convive com a figura da mãe - dada como morta por suicídio -, assombrando a casa.

O filme teve sua estreia mundial em maio de 2008, dentro da seleção da respeitada mostra Un Certain Regard (Um Certo Olhar) do Festival de Cannes, onde colheu as primeiras comparações com a pegada radical do Cinema Novo. Ganhou prêmios internacionais em Chicago, Havana e Los Angeles, e nacionais em Gramado e no Rio de Janeiro. O filme tem um argumento muito bom, atuações primorosas, mas um roteiro que poderia ser menos elástico - o filme tem duas horas e quarenta minutos. Apesar disso, é um belo trabalho que surpreende na estréia de Matheus Nachtergaele como diretor.



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