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quarta-feira, 8 de julho de 2009

Vidas em Loop

Se pudéssemos decupar nossa vida e colocar as cenas do que vivemos até aqui num filme, numa rotação acelerada, nos veríamos repetindo tantas vezes as mesmas coisas que teríamos vertigem com a nossa própria automimese. Buñuel deve seguramente ter feito esse exercício ao criar O Anjo Exterminador. O resultado é uma obra inquietante e suficientemente reflexiva aos mais engajados com a evolução pessoal. O surrealismo de Buñuel toma emprestado dos pesadelos suas técnicas narrativas.

O cineasta surrealista espanhol segue fortemente a linha dos seus amigos, Salvador Dalí e Federico García Lorca. Seus filmes, mais do que apresentarem situações absurdas ou ininteligíveis, criam atmosferas de sonho (ou pesadelo), mas nada que nos afugente. Muito pelo contrário, Buñuel é cinematografia obrigatória ao curriculum dos aficcionados mais exigentes, pois ele faz cinema com conteúdo de gente grande. Interpretar os filmes de Buñuel requer, no entanto, um dose satisfatória de conteúdo pessoal de psicologia humana, pois ele trabalha com símbolos nem sempre reconhecíveis na realidade comum, mas presentes no inconsciente. O extermínio, aqui, é das convenções e das máscaras cultivadas na sociedade, sobretudo na aristocracia, que luta por uma sobrevivência muitas vezes de pura aparência.

O Anjo Exterminador é uma de suas maiores obras-primas. Repleto de cenas legendárias, pode-se entender o que está ali de diferentes maneiras. O tom e o clima do filme são fiéis ao surrealismo do cineasta, mas a narrativa em si é mais convencional, e talvez por isso a obra seja ainda mais genial. O filme é especialmente célebre por possuir um dos plots mais originais da história do cinema: um grupo de pessoas da alta sociedade, após passar a noite na casa de um deles, se vê impossibilitado de sair da sala, mesmo com a porta escancarada. Mas o que aparentemente parece ser uma idéia sem sentido, ilógica e estranha abre margem para um tema de reflexão extremamente rico: a falta de posicionamento diante dos fatos, a repetição mimética da vida na sociedade, a devoção por aparências, os mata-burros estagnadores, os ganhos secundários desnorteadores da ação construtiva, a patologia humana diante da superficialidade da vida e assim por diante.

O próprio Buñuel diria "a moral burguesa é, para mim, uma imoralidade contra a qual há de se lutar; esta moral que se baseia em nossas instituições sociais mais injustas como são a religião, a pátria, a família e a cultura, em suma, o que se denomina os pilares da sociedade." Ele era radical, mas, embora sua contradição contra as imoralidades da sociedade se tornasse aparente por meio do machismo, que lhe era peculiar, Buñuel sabia criticar através da sua arte. O retrato da burguesia criado por ele de fato é fiel posto que descortina uma faceta cruel, fria e desumana de um nicho acima-do-bem-e-do-mal da sociedade. Não podemos negar as vulnerabilidades humanas da classe, representada aqui com certa complacência através de desvios padrões de comportamento, como a arrogância, a hipocrisia, o adultério, a vaidade, o preconceito, a desconsideração ao próximo, a imoralidade, além da inevitável ironia sórdida. O Anjo Exterminador atua como carrasco desses seres, que na visaõ do cineasta, preferem explorar e pisotear os menores, enquanto afundam-se no caviar e embreagam-se de champagne francesa.

Sem tomar partido, podemos levar boas lições do filme e um pacote de temas para reflexão, pois, burguesia a parte, somos todos humanos e, em maior ou menor grau de vulnerabilidade, com maiores ou menores conseqüências, sofremos mais ou menos dos mesmos males.


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