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sexta-feira, 12 de junho de 2009

Dez Razões para Ver Kieslowski

A carreira de Kieślowski se divide entre a fase polonesa e a francesa. Depois de concluir a faculdade, o jovem diretor começa a produzir documentários. A vida dos trabalhadores e dos soldados era o foco principal desses filmes. A narrativa dos documentários passa a influenciar os primeiros filmes de ficção do diretor. "A Cicatriz", "Blind Chance" e "Amador" são exemplos desse estilo. O diretor fez 23 filmes em sua carreira, prematuramente encerrada com sua morte, em 1996, aos 55 anos de idade.

O cineasta aprimora seu estilo ao realizar seus próximos filmes. Os quatro últimos filmes do diretor foram realizados através de uma produção francesa: "A dupla vida de Veronique" (estrelando Irène Jacob) e a Trilogia das Cores (A liberdade é azul, A Igualdade é Branca e A Fraternidade é Vermelha). A trilogia das cores foram filmes os quais deram um maior sucesso comercial ao diretor. São baseados nas cores da bandeira francesa e no slogan da revolução do país. O toque de Kieslowski está na sua representação das palavras liberdade, igualdade e fraternidade e na forma que as cores dão o ambiente psicológico da história. Outro ponto interessante é reparar no cruzamento de elementos em comum entre os três filmes.

Decálogo é um projeto de grande intensidade e função. A forma de contar a história muda nesta fase. O diretor passa a usar uma quantidade mínima de diálogos, concentrando-se no poder da imagem e das cores. As palavras são substituídas por uma poesia imagética. Feito para a televisão polonesa, a série lança em dez media-metragens um novo olhar sobre os dez mandamentos dados por Deus a Moisés. Mas Decálogo não é um estudo religioso. Está longe disso. O mais perto que poderíamos chegar de algo assim seria numa compilação teológica, mas também está longe de ser vista como tal no mundo cinéfilo. Na verdade, Decálogo é uma indagação religiosa, um questionamento racional de até onde esses tais mandamentos poderiam ser seguidos nos dias de hoje ou retratados no mundo real. Os filmes mostram os elementos abstratos da condição humana como culpa, solidão, amizade, tristeza, ética e medo.

Decálogo trata-se de uma coleção completa de histórias intimistas, que cobre todo o espectro de emoções a que um ser humano está exposto durante sua breve passagem pela Terra. A obra - a que podemos chamar de obra-prima - não se trata de uma mini-série, cujos os outros nove capítulos são continuidades do primeiro. Os filmes são independentes entre si. Pode-se assistí-los de forma aleatória, mas é fácil perceber que todos têm conexões aparentemente invisíveis entre eles. Todos possuem uma unidade temática e narrativa rara.

Nas dez histórias, todas ambientadas em um conjunto residencial de Varsóvia, pessoas comuns enfrentam problemas cotidianos que se manifestam em diversas camadas de significados. O conjunto de apartamentos, com sua arquitetura monótona típica dos países do Leste europeu, sugere que, dentro de cada uma daquelas janelas, um drama universal. A idéia inicial do cineasta, que escreveu os dez roteiros junto com o parceiro Krzysztof Piesiewicz, era fazer um pequeno filme sobre cada um dos Dez Mandamentos. O projeto partiria de uma reflexão mais ampla a respeito da decadência dos valores católicos em uma Polônia transformada durante o século XX numa terra devastada, primeiro pelos nazistas, e depois, em território de ateísmo obrigatório, pelos comunistas. Enquanto escrevia as histórias, contudo, Kieslowski mudou de idéia. Retirou todas as referências à política, ao tempo e ao país, e deu dimensões mais universais à narrativa. Isso ressaltou o ser humano, que passou a ocupar o centro das narrativas, o que dá ao filme uma dimensão maior, tanto em conteúdo como em importância, pois passou a retratar na prática a forma como os dez mandamentos podem ser aplicados na condição da rotina humana. Aqui vemos mostras de problemas que todos nós podemos viver no dia-a-dia, de modo que, a impressão que se tem, após assistir todos os episódios, é que Decálogo transcende na abordagem ao drama humano, torna-o quase um documentário. A soma dos dez fatores supera, e muito, o valor individual de cada um deles. Quando se observa os dez pequenos filmes como um conjunto unico, fica difícil apontar os melhores. Cada um dos episódios tem uma grandeza ímpar e uma coerência admirável, o que leva à uma força coletiva inigualável.

Nesse foco dos dramas humanos temos diversas polaroids. Do amor velado de uma filha pelo pai, até a paranóia de um homem com a crença da traição de sua mulher, coroado com um final comovente, os dez mandamentos estão muito bem representados. Cada uma das estórias cativa o espectador do começo ao fim. Elas estão muito distante do tipo de narrativa clássico, com começo, meio e fim bem demarcados. São pequenas fatias de vida.

Kieslowski filmou os dez episódios com diferentes diretores de fotografia, mas a unidade visual é bastante evidente. Ele também providenciou que os diferentes protagonistas de cada episódio aparecessem, como figurantes, em outros; assim, o espectador atento pode reconhecer o médico do episódio 2 dividindo um elevador com o casal que protagoniza o episódio 3, e assim por diante. Há ainda um personagem misterioso, que não tem nome e jamais abre a boca, que aparece nos dez episódios, observando a ação sem nunca tomar parte dela. O sujeito é um mistério que Kieslowski nunca quis elucidar. Ele só pediu que o “homem sem nome” não servisse de distração para os verdadeiros mistérios que quis apresentar nos enredos de cada história.

Decálogo é cinema em um nível de excelência que não existe mais, obrigatório na coleção de qualquer cinéfilo que se interessa pelos mistérios da natureza humana

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