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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Sementes da Liberdade

A Revolução Francesa marcou o mundo pela transformação que a força popular causou na França a partir de 1789, mudando o quadro político e social do país e dando início à Idade Contemporânea. Cansados da miséria na qual viviam e dos desmandos da nobreza, o povo se uniu e lutou pelo fim da opressão monárquica, aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios universais de liberdade, igualdade e fraternidade. Em uma frase marcante de Maria Antonieta, ela diz “se o povo não tem pão, que coma brioche.” A situação na França era a de um Estado pobre num país rico. A burguesia tão enriquecida confrontava uma massa de camponeses famintos, onde o trabalho e o sustento andavam muito além do conceito de dignidade e o sentimento de exploração imperava. Algumas décadas mais tarde, na primeira metade do século XIX, a Revolução Industrial fez migrar muitos camponeses para os grandes centros à procura de trabalho. A mão-obra tornou-se excedente e o trabalho se desvalorizou, expondo os trabalhadores a condições de exploração por parte da burguesia financeiramente dominante. O legado da Revolução Francesa sofre, assim, com o surgimento de uma plutocracia dissimulada.

Baseado no livro homônimo de Émile Zola, Germinal é ambientado na França do século XIX e descreve a situação dos trabalhadores das minas de carvão ainda nos primórdios da Revolução Industrial. Com o surgimento das máquinas, o carvão se tornou de extrema importância por ser a fonte de energia para o funcionamento das mesmas. A exploração desse minério passou, entretanto, pelo doloroso processo de exploração de homens, mulheres e crianças, que se aventuravam nos confins subterrâneos para arrancar o sustento de suas famílias. Sem distinção de gênero ou idade, todos eram empregados nas minas. Muitas famílias enfiavam todos os seus membros nesse trabalho para engrossar a renda familiar, pois os baixos salários não permitiam que os homens fossem arrimos de família. Essas famílias, por sua vez, aumentavam a quantidade de filhos para que eles se tornassem uma força de trabalho e renda no futuro. Numa família de nove membros, por exemplo, todos os salários arrecadados com o trabalho nas minas ainda não eram suficientes para garantir o pão na mesa todos os dias. Por outro lado, os patrões, donos das minas, se refestelavam com iguarias das mais nobres em suas mesas e viviam em palacetes. Se antes da Revolução Francesa vemos a nobreza explorando a classe trabalhadora, na Revolução Industrial esse papel ficou por conta da burguesia.



O contexto histórico em que o excelente Germinal, do diretor Claude Berri, foi inserido mostra que o impulso do desenvolvimento tecnológico proporcionado pela Revolução Industrial traz como consequência condições econômicas e sociais inicialmente desastrosas. As corporações de ofício dão lugar às empresas burguesas, fazendo com que o sistema de produção artesanal fosse desmantelado e artesãos camponeses tivessem que correr atrás de trabalho nas cidades industrializadas. Segundo Marx, “o processo capitalista é uma relação de troca tendo o lucro como resultado da expropriação da mais-valia gerada pela força de trabalho," ou seja, o excedente é apropriado pelo capitalista.” A venda de sua força de trabalho é a única solução da classe proletariada para garantir a sua sobrevivência.



No contexto francês retratado no filme, a liberdade passou a não existir. A dependência de se tirar o sutento com um trabalho terrivelmente remunerado amarrou famílias inteiras à exploração no trabalho e a condições impensáveis de vida, além de que as casas em que essas famílias viviam pertenciam aos seus patrões. A igualdade se tornou extinta. Uma alarmante diferença social crescia entre uma minoria burguesa endinheirada e dominante e uma massa de trabalhadores oprimidos e mortos de fome. A fraternidade desapareceu com o ódio que um povo subjulgado passou então a nutrir por uma classe burguesa indiferente à pobreza e cada vez mais rica. Numa das cenas finais do filme, um senhor doente por causa da ingestão de carvão, estrangula fria e repentinamente a filha do dono da empresa para a qual havia trabalhado. O velho doente, moribundo e fraco, levanta-se de sua cadeira, anda calmamente em direção à bela moça e num arroubo de ódio aperta o seu pescoço até ela perder os sentidos e morrer. Essa falta de liberdade, igualdade e fraternidade surge como consequência de um assombroso contraste social o qual, nessa época, marca o retrocesso na prática dos princípios universais. Depois que a Revolução Industrial criou as suas raízes com profundas contradições e injustiças sociais, a chamada Idade Contemporânea despontava da terra com os primeiros frutos do novo mundo capitalista. O terreno não poderia ser melhor para germinar “a necessidade de uma consciência de classe para o início de uma real revolução por parte do proletariado,” segundo Marx. 



Os trabalhadores das minas não tinham garantia de emprego, benefícios, segurança, saúde e eram expostos a cargas de tabalho desumanas de até 16 horas por dia. Recebiam seus parcos salários por uma produção cada vez mais exigente e menos remunerada. Não tinham apoio de sindicatos e associações, nem contavam com leis que os protegessem da exploração dos patrões. Dessa maneira, homens, mulheres e crianças morriam no e/ou do trabalho com o carvão, eram vilipendiados e roubados, trabalhando em condições insalubres e inseguras e sujeitos a toda sorte de acidentes que lhes ceifavam a vida e lhes retringiam o pão, Muitos chegavam a pedir esmolas aos burgueses e acumulavam dívidas nas lojas de alimentos. Por conta da completa penúria, a vida operária era levada por meio de muita luta e privação, sacrifício e esgotamento. Contudo, à sombra de Marx e Engels, surge uma formação embrionária dos agrupamentos de trabalhadores fortemente inspirados na doutrina socialista, destinados a presionar os empregadores donos das minas e a exigir melhor remuneração e condições de trabalho.


A obra de Zola remete ao processo de gestação e maturação dos movimentos grevistas, ou à uma atitude embrionária mais agressiva por parte dos trabalhadores das minas de carvão, na França, contra à exploração de seus patrões. Ao lado da Inglaterra, a França foi um dos países que integraram o conjunto das primeiras nações industrializadas. O diretor Claude Berri tratou de fazer um filme onde a crueza dos fatos tem realmente um papel fundamental para ambientar fidedignamente a obra de Zola e sua intenção foi a de chocar (ou revoltar) as mentes mais socializadas e incomodar aqueles cujos princípios universais funcionavam na prática, tal como era a intenção de Zola. Essa forma contundente com que os acontecimentos no filme são mostrados não implicam, entretanto, partidarismos sociais ou revelam tendências politicamente corretas, confrontadas na velha fórmula de mocinhos e bandidos. Qualquer julgamento deve ficar por conta da análise simples e crua dos fatos, tal qual acontece diante do professor numa aula de história. Muito embora, vale aqui ressaltar, uma sensação de reviravolta revanchista nos acompanhe a partir do momento em que os trabalhadores se revoltam. O que transparece no propósito do diretor é um sinal vermelho para as dificuldades do mundo operário do século XIX. Émile Zola escreveu Germinal no período do surgimento da Internacional Comunista e faz menção a Marx e Engels, assim como ao anarquismo, e isso fica claro no filme através de um dos seus personagens. Para escrever Germinal Zola trabalhou dois meses numa mina de carvão, vivendo tal um mineiro, comendo e bebendo, dormindo e acordando, assim como sofrendo as mesmas augúrias daqueles trabalhadores infelizes e explorados ao extremo. Isso, consequentemente, deu à história um teor realista incontestável. A ótima reprodução de época da película de Berri, uma fotografia sublime e as atuações arrebatadoras de grande parte do elenco reforçam artisticamente a importância dessa produção francesa do romance de Zola. Germinal é imperdível não apenas pelo seu valor histórico, como pelo farto material que a obra nos traz para gerar uma significativa análise das qualidades e vulnerabilidades da natureza humana.

3 comentários:

  1. Muito bom, hen Mário...
    Temos que aproveitar o seu trabalho de "garimpo" e seleção de filmes, para o cineclube tbm; além das suas postagens, como a crítica LIÇÃO DE VIDA feita por você, no último filme antes do recesso em Janeiro aqui em FOz...( E dos improvements no site, é claro)
    Muito OBrigado.
    AChei que vc estivesse de férias...Até entrar sua postagem sobre o FERNÃO CAPELO GAIVOTA, que aliás, o pessoal gostou muito: Os comentários foram parecidos com o seu da resenha, ou seja, a qtd ( até abrangência completa quiçá) das temáticas conscienciológicas pela obra...Impressionante...
    Além da fotografia (imagens) e da trilha do Neil DIamond que dispensam comentários...
    Agora, durante o recesso, vou tentar alugar ( ou comprar mesmo) o DVD de NOSSO LAR, para o Waldo comentar na Sessão de RETORNO do CINE em Fevereiro...
    O que acha? |Vc teria interesse em comparecer se a gente conseguir isso?
    Abs/

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  2. Seria um prazer, Marcus. Já me considero um colaborador de carteirinha e tudo do Cine Clube de Foz do Iguaçu. Pode contar comigo. Em dezembro estava realmente de férias. Por isso, os posts ficaram em standby. Agora estou voltando com carga máxima outra vez.
    Grande abraço,
    Màrio Luna

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  3. Adorei. Meu trabalho vai ficar perfeito!

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