Depois de
assistir ao filme, John Lennon convenceu o pessoal da Apple a comprar os
direitos de exibição de El Topo, de Alejandro Jodorowsky, para passá-lo nos cinemas underground de Nova Iorque. Isso
foi suficiente para transformar o filme numa obra cult de grande sucesso e
ganhar da crítica a alcunha de "intrigante obra-prima".
A
contracultura é um movimento que teve seu auge na década de 1960, trazendo um
estilo de mobilização voltado para a contestação social. Jovens inovaram
estilos, voltando-se mais para o antisocial aos olhos das famílias mais
conservadoras, com um espírito mais libertário. Nessa onda surgiram o movimento
hippie, a liberação feminina, o sexo livre, as ondas místicas a partir do
budismo, as viagens cibernéticas inspiradas em Aldous Huxley, entre outras
extrapolações de comportamento. No cinema, uma verdadeira avalanche de filmes
“cabeça” tornaram-se blockbusters nas famosas sessões da meia-noite e nos cines
underground. As conversas partiam de Jung, atravessavam todos os famosos
psicanalistas e acabavam cumprindo um trajeto vertiginoso passando pela
filosofia e as religiões orientais. Criou-se a figura do “bicho-grilo” e do
“maluco-beleza”. A piração libertária generalizada era sinônimo de erudição,
politização e consciência espiritual na busca por uma transcendência que
oferecesse qualquer outra coisa além do mundo que conhecemos.
O diretor,
roteirista e ator franco-chileno Alejandro Jodorowsky era um desses
malucos-beleza que, em 1970, lançou a sua controvertida obra-prima El Topo,
título que, em português, quer dizer A Toupeira, um filme cabeça onde se encontra
absolutamente tudo que a contracultura valorizava: simbolismos cifrados,
sigmas, metáforas, linguagem subliminar, representações, alegorias,
misticismos, surrealismos, bestialidades etc. O caldeirão interpretativo de dar
nó em miolos se estende por mais de duas horas de projeção no seu longa
bicho-grilo, filmado inteiramente no deserto, o que não poderia ser em outro lugar,
pois o deserto desempenhou na imaginação popular dos adeptos do movimento uma
espécie de lugar santo de onde a vida começava e lá também terminava, uma ideia
até certo ponto respaldada nas viagens da banda The Doors, que no deserto
encontrou inspiração para os seus sucessos, fumando maconha, viajando com
mescalina e lendo As Portas da Percepção de Huxley. Mas El Topo não é uma droga
de filme e tampouco um filme-droga. Pelo contrário, Jodorowsky nos dá uma aula
de como interpretar os desmandos da sociedade a partir de um retrato caricato
bastante criativo e inspirado.
Esse é um
filme para ser visto e analisado a partir de uma visão subjetiva. Qualquer
crítica que o apresente deve, primeiramente, esclarecer que a observação dos
fatos não ocorreu durante uma viagem de peiote, apesar do roteiro não ajudar
muito a sua autodefesa. A questão é a seguinte: no melhor estilo western
spaghetti do Sérgio Leone, numa região encrustada no deserto mexicano, surge a
figura de um cowboy justiceiro imbuído de derrotar os quatro deuses do lugar
(hmmm), o que, leia-se nas entrelinhas, os deuses que protegem toda a
humanidade. Sua primeira batalha é com um coronel manipulador e sanguinário que
se divertia dizimando vilarejos. Do grotesco ao sublime, o filme tem de tudo.
Mas não tente interpretar todos os sigmas que aparecem na tela, pois chegará um
momento em que você estará completamente confuso, dando pausa no filme a cada
15 segundos. Deixe a imaginação cavalgar no lombo de um cavalo enquanto
acompanha o ator principal em suas contendas surrealistas, porque chega um
momento em que a sua capacidade interpretativa acaba pegando no tranco a coice
de esporas.
Apesar de
surpreendentemente violento, o gigantismo usado nas cenas acaba transformando o
visual numa alegoria cômica. Há passagens seriamente hilárias, como a
metamorfose de comportamento de uma cowgirl agressiva para uma lésbica
apaixonada, o padre que mostra numa missa que deus faz milagres usando para
isso a roleta russa com os fiéis – claro que alguém acaba se estrepando – ou as
cenas dos embates do justiceiro, que busca o poder de um deus, dando cabo
daqueles que já se diziam deuses. Imagino que Jodorowsky tenha se perguntado
se, num mundo com tantos deuses, não haveria uma guerra entre eles para que um
conquistasse o comando supremo. Faz sentido. Aqui, o aspirante a deus não
confia no próprio poder, mas consegue vencer os quatro imortais no deserto sem
maiores problemas, e como em time que tá ganhando não se mexe, até que uma
derrota espantosa aconteça para dobrar a arrogância, o pobre descobre que é
mortal... pasme... a balas disparadas pela lésbica, que havia se apaixonado
pela sua mulher, a ex-amante do coronel. Aqui o filme descamba para uma segunda
parte, sem o justiceiro.
Nesta
segunda parte, Jodorowsky coloca em prática a justificação do título do seu
filme. A toupeira é um animal que vive embaixo da terra, cavando buracos, e
quando ela chega à superfície é cega pelo sol. Para representar as toupeiras,
Jodorowsky escolheu a classe dos deficientes físicos e há um grande grupo deles
vivendo numa caverna, liderados por uma quase drag queen transformada em deusa.
Na verdade, essa percepção é meramente visual, com a suspeita de que os deuses
são todos andróginos. Contudo, quando uma anã lhe corta o cabelo de Divine e a
barba de Maomé, descobrimos se tratar de um homem comum, sem qualquer
divindade, mas com um mínimo de sinapses para descobrir uma maneira de cavar
túneis e salvar os aleijados da escuridão e do ostracismo. Acompanhado pela
anã, com quem acaba se casando no vilarejo onde as ações passam a acontecer, o
ex-pseudodeus empreende-se no seu projeto sob a terra e consegue salvar a
todos. Infelizmente, depois da euforia da salvação e em plena caminhada para a
liberdade, a chusma de renegados acaba abatida a balas na rua principal do
vilarejo pela elite do lugar. Aqui ficamos sabendo que o ex-pseudodeus não era
ex nem tampouco pseudo, mas um deus de verdade, que, ao ver o fim daqueles por
cuja liberdade ele havia lutado tanto, desiste do mundo ateando fogo em si
mesmo. No fim, a anã, sua mulher, dá a luz a um filho e deixa o vilarejo na
garupa do cavalo de um ex-inimigo do seu marido morto, ou do seu deus
sepultado. Bem, enfim... eu preciso tomar uma água gelada.