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sábado, 28 de fevereiro de 2009

Título original: Etz Limon; Título de lançamento no Brasil: Lemon Tree ; Diretor: Eran Riklis; País: Israel / França / Alemanha; Duração: 106'; Gênero: drama; Ano: 2008

O conflito árabe-israelense ocorre há tempos imemoriais no Oriente Médio. Até hoje, a paz na região vem sendo um desafio de Sícifo e muitas foram as tentativas de se chegar a um nível satisfatório de convivência pacífica, com alguma margem de segurança para ambas as partes e em ambos os lados dos territórios. Nesta mais nova versão de como essa contenda pode ser disputada não estamos na faixa de Gaza, mas no limite entre os territórios de Israel e da Cisjordância, com um pomar de limões bem no meio deles. Tampouco temos o Hezbollah, nem o Hamas, nem as tropas militares israelenses envolvidos na disputa. Neste round da luta a complexidade dos ataques militare e terroristas da grande angular bélica dá lugar a um enfrentamento simples e direto entre um Ministro da Defesa e uma camponesa plantadora de limões, mas tão poderoso quanto um míssil ou um homem-bomba. E aqui surge a reflexão: por menor que seja a disputa entre árabes e israelenses, a contenda terá os mesmos temperos da contenda maior: disputa de terras, demonstrações de poder, inflexibilidade, culturas e tradições em choque. O filme, na verdade, é uma versão pocket da grande disputa territorial entre os dois países, com a participação especial de um homem-bomba, que surge em off, e alguns militares israelenses, que tomam conta da casa do Ministro da Defesa. Salvo esses personagens da contenda maior, aqui a disputa é quasi pessoal, entre o público e o privado, mas igualmente sem possibilidade de conciliação.

Ao examinar a terna tensão entre palestinos e judeus no pequeno sítio fora da cidade, transformado em pouco tempo num assunto de segurança nacional, e mais tarde em assunto dos noticiários internacionais, depois que o Ministro da Defesa de Israel se mudou para lá, temos a impressão de que qualquer motivo pode avinagrar a relação entre os dois países, e também de que não há segurança de paz alguma, de que tudo gira em torno da inflexibilidade motivada por culturas familiares, e milenares, que se tornam obstáculos intransponíveis, já que tanto para os árabes quanto para os judeus a tradição tem a missão emblemática de nunca ser derrotada. Mas a rivalidade entre os vizinhos em Lemon Tree até que parece bem interessante de ser contada, devido as nuâncias e sutilezas refinadas de um roteiro, desenvolvido pelo diretor Eran Riklis (A Noiva Síria) e pela ex-jornalista Suha Arraf a partir de histórias ­reais, que mostra o conflito local como uma amostra do conflito maior: briga por terra e por segurança de ambas as partes das fronteiras.

Tudo começa quando o ministro da Defesa israelense, Israel Navon, vai morar ao lado da casa de Salma. Para garantir a segurança do ministro, o serviço secreto israelense decide que os pés de limão das terras de Salma terão que ser cortados. A moradora recebe então uma carta do governo israelense informando sobre a decisão, recompensada com o pagamento de uma soma de dinheiro referente à uma indenização. Mas, como para os árabes, o dinheiro de Israel não é bom nem válido, Salma imediatamente sai em busca de um advogado a fim de começar a defedner já o patrimônio deixado pelo pai há 50 anos e cuja história se confunde com a dela própria. . Os limoeiros de Salma tornam-se assim o epicentro de uma guerra de fronteiras, iniciada sem qualquer tentativa de negociação.

Uma das primeiras medidas do serviço secreto israelense foi colocar arame farpado ao redor do terreno onde estão os limoeiros e proibir Salma de entrar na sua própria plantação, considerada local perigoso, passível de investidas terroristas. Enquanto o processo corria no tribunals, Salma se apaixona pelo seu advogado. Mas a imagem do marido, morto anos atrás, na parede da sala, é uma ameaça fantasmagórica constante. Aqui começa uma pressão colateral de cunho moralista por parte dos líderes árabes, que nada fazem por Salma, além de aporrinhar-lhe a vida com ameaças em defesa da moral e dos bons costumes. Mais tarde, no decorrer do processo e da história, num momento crucial, além da projeção internacional que o caso teve, os mesmo líderes políticos mostram que estão mais inclinados a instrumentalizar Salma e exibí-la como símbolo de sua causa do que a efetivar a proteção dos seus interesses. E isto quer mesmo dizer que esta mulher lutou praticamente sozinha contra o Ministro de Israel. Aliás, a força das mulheres no filme é um ponto importante de ser notado. A mulher do ministro, mesmo sendo ela a esposa do ministro da Defesa, é uma mulher que vive cercada de proteção e consequentemente como se em prisão domiciliar. Ela rejeita essa realidade e afiniza-se com Salma, numa demonstração clara de admiração pela força daquela camponesa. Quando o caso chega ao final, a mulher do ministro consegue finalmente tomar ela mesma uma nova ordem para a própria vida. Aquele limoeiro acaba mexendo com a vida de muitos de uma maneira definitiva.

Evitando os clichés dos dramas de tribunal, Lemon Tree mantém sua história quase o tempo todo longe da imagem de juízes compenetrados e advogados desesperados por justiça para seus clientes nos tribunais. A intervenção em seu pequeno quintal mostra-se, mais do que um incidente menor, um efetivo desdobramento da mesma política que é responsável, não muito longe dali, pela construção do enorme muro que divide palestinos e judeus e cuja sombra cresce a olhos vistos no horizonte. O que fica de Lemon Tree é uma aparente perpetuação do conflito no drama das relações humanas e a complexidade que representa seu sistema de disputa, onde a inflexibilidade, seja no confronto dos argumentos ou no embate de forças, seja por qual motivo for e por qualquer que seja a origem das nossas convicções, se familiar ou cultural, se social ou política, enfim, esse sistema sempre estará envolvido nos enfrentamentos do dia-a-dia. A solução do conflito em Lemon Tree não apetece as partes envolvidas, mas parece óbvia demais para ter causado tantos dissabores. Como dizia Aristóteles, "o homem para as coisas simples são como morcegos na luz: completamente cegos." Essa é uma boa mensagem: para solucionar um conflito comece pela parte mais simples e depois continue pela via mais óbvia.


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Navegar é Preciso, Viver e Representar Não é Preciso

O décimo longa-metragem de Eduardo Coutinho, um dos maiores, documentaristas brasileiros, além de levantar a discussão sobre velhos temas das sessões de terapia, como representação e realidade, as máscaras da personalidade e os disfarces da auto-imagem, nos deixa um questionamento incômodo: quando estamos apenas representando ?

Antes de falar sobre Jogo de Cena, seu novo filme, gostaria de falar sobre Eduardo Coutinho, porque sou um dos seus admiradores. Por força de trabalhos como Edifício Master, Peões, O Princpípio e o Fim e Santo Forte aprendi a gostar deste cineasta que tem também o clássico da década de 70 Cabra Marcado para Morrer no seu curriculum vitae. Depois de um começo de carreira entre a ficção e o documentário, Coutinho opta pela segunda linha de criação, comprometido com um acerto de contas com a História. Recentemente, realizou cinco filmes em seis anos! - Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2002), Peões (2004) e O Fim e O Princípio (2005). A sensibilidade de Coutinho para ouvir pessoas comuns é uma aula para alguém com planos de ser documentarista como eu. Coutinho utiliza essa ferramenta como poucos e o faz como que buscando sempre novos limites e sólidas técnicas, como a que usou nesse último trabalho, Jogo de Cena. Fruto de uma laboriosa reflexão, em Jogo de Cena Coutinho não apenas nos mostra que a representação é uma característica indissociável da nossa natureza humana, como também que somos todos bons artistas da realidade.

Com um anúncio de jornal, o diretor convida mulheres a darem depoimentos contando suas histórias de vida. Ao final, 83 mulheres atenderam ao anúncio. Depois, apenas 23 foram selecionadas e filmadas no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro. Três meses depois, algumas atrizes receberam o texto e o DVD das entrevistadas escolhidas para interpretar, a seu modo, as histórias contadas. No produto final, então, Coutinho coloca os dois depoimentos, tanto o real como o interpretado, e deixa para o espectador descobrir de quem é, de fato, a história que está sendo contada, criando assim um jogo de cena onde não sabemos onde começa a interpretação e termina a realidade. O diretor acaba criando um longa que trata de inúmeros assuntos, como preconceitos, relacionamentos mal sucedidos, perdas, exclusão social e gravidez na adolescência, além, claro, das difíceis relações familiares. Muitos depoimentos têm a função de confundir o público, até mesmo as atrizes famosas contam suas histórias reais e as menos famosas se misturam entre as anônimas, de maneira que nunca temos certeza quem ali eram as atrizes e quem eram as entrevistadas. O interessante é ver, por exemplo, como estas acabam mexendo com as atrizes (as famosas sobretudo!) de forma que elas nunca conseguem ser indiferentes ao texto. No time das atrizes famosas temos 3 nomes de peso: Andréa Beltrão, Marília Pêra e Fernanda Torres, que surpreende com um dos melhores momentos do filme. Insatisfeita com sua performance na interpretação de uma das entrevistadas e inconformada por não atingir o nível ideal de representação, Fernanda se desmonta diante de Coutinho. "Incrível," ela repete várias vezes quase como que num transe artístico, pois ela mesma não acredita naquele obstáculo, e diz uma frase muito boa, "na ficção, é mais fácil construir uma personagem e se sair bem porque o nível de exigência no medíocre é satisfatório. Mas quando essa personagem é real, você tem sempre um exemplo a seguir, e ele está ali, esfregando na tua cara o nível em que você deveria estar." Andréa Beltrão também tem uma participação marcante, quando ela chora quando não esperava chorar e diz ao Coutinho que foi surpreendida pela força do texto.

As possibilidades de interpetação oferecidas por Coutinho são muitas e o documentário está mais interessado em levantar questões do que em respondê-las. A variedade de tipos que desflam diante da camera mostra uma diversidade de assuntos tratados de maneira direta e sincera, mas o ponto mais marcante do filme fica mesmo por conta da reflexão sobre a representação. Quantas vezes estamos representando nas situações do dia-a-dia, com personagnes do nosso imaginário pessoal,
ou através dos nossos sistemas de crenças, que cultivamos por inúmeras razões ? Todas as nossas representações dizem um pouco sobre nós mesmos, mas nos afastam da realidade e de tudo que ainda precisamos melhorar como pessoas. Desenvolve-se de uma necessidade de fuga da realidade para imergir num mundo idealizado. Mas toda essa criatividade de ser outra pessoa cansa com o tempo, sobretudo quando o reconhecimento não vem, e nem os benefícios. A representação é uma espécie de doação sem limites nem vantagens, e flui na via do auto-engano. A crença numa realidade alheia à nossa é uma patologia delicada e de difícil acesso para quem quer ajudar numa tomada de consciência.

Quando o filme termina, me coloquei no papel de uma das atrizes, tentando representar a vida de outras pessoas. Me perguntei quantas vezes tentei representar alguém que não sou. Essa reflexão foi inevitável. Assumimos geralmente posturas que condizem muitas vezes com o que fazemos, mas não conseguimos ser nós mesmos nessas funções e, então, representamos alguém que não somos, até que esse papel se torna insuportável e nos leva à frustração, à depressão e à falência como pessoa. Qual é o seu valor na verdade ? Quanto custa ser quem não somos ? Pode custa uma vida inteira.




















domingo, 8 de fevereiro de 2009

História da Vida Privada Brasileira: 1967

Pouco se conhece do Arnaldo Jabor por detrás das camêras de ontem e seu legado no cinema é bem mais interessante do que lembrar dos seus textos-denúncia dos jornais globais de hoje.

No documentário A Opinião Pública, realizado em 1967, Arnaldo assina seu nome entre os grandes documentaristas do Cinema Novo, inaugurando no Brasil o estilo cinema-verdade, na intenção de filmar o destino da classe média brasileira após o golpe militar de 1964 - uma classe que é de fato a detentora da verdadeira opinião pública nacional.

O filme é uma deliciosa viagem no tempo, ao melhor estilo História da Vida Privada Brasileira. A camera passeia por um quadro de realidades que formam a sociedade como um todo. Rapazes, mulheres, homens e crianças emergem num cenário autêntico de desesperanças e reconstruções, de sonhos e superações, numa readaptação social pacifista que todo bom brasileiro conhece. Nada parece nos destituir de sonhos, nem mesmo a repressão e a violência de uma sociedade que mudava pra pior. "Eu percebi que, no Brasil, a existência da classe média era crucial," diria Jabor. "Então resolvi fazer um filme sobre a classe média, porque só falavam dos pobres e dos ricos."

Jabor conseguiu fazer um filme com som direto, uma tecnologia rara para os padrões da época, e literalmente se enfiou na casa das pessoas, entrevistando toda sorte de seres humanos e colhendo um material para lá de interessante, divertido, reflexivo e hoje nostálgico. Seu filme parece um par de olhos perscrutadores, que tudo querem observar atentamente, estudar, pesquisar e, por fim, entender. "Fui para as ruas pesquisar o homem comum, o óbvio, aquilo que não parecia ser assunto de cinema, porque sabia que o que eu queria mostrar estava por detrás do óbvio."
O sucesso de A Opinião Pública foi imediato. O projeto acabou por se tornar um longa metragem que passou em 11 cinemas cariocas, ganhou vários prêmios internacionais e conquistou platéias por ser um filme que justamente mostrava pela primeira vez as platéias refletidas na tela do cinema, a vida cotidiana de uma classe esmagada que, ingenuamente, havia criado seu próprio monstro: uma revolução contra ela mesma, resultado de um misto de infantilidade, reacionarismo e falta de informação política. Um comportamento, diga-se aqui, que, considerando as devidas proporções de épocas distintas, não está muito longe daquele que vemos hoje.

Enquanto o engajamento estudantil ensaiava seus primeiros passos revolucionários, movido por esperanças e sonhos, milhares deixavam o país para o exílio no exterior. A censura calava as artes e a literatura e soltava a voz dos militares que haviam tomado o poder e a de seus seguidores. O comunismo ganhava contornos de obra demoníaca e os esquerdistas se tornaram párias a serem exterminados da noite para o dia. A sociedade fervilhava de maneira unilateral, politicamente falando, pois, enquanto uma das metades ia para as ruas protestar e levar pau da polícia, a outra metade parecia se alienar. Poucos sabiam o que era repressão política e que fim haviam dado ao João Goulart. Em meio à essa cegueira política e completa falta de lucidez, o povo seguia o curso natural de uma vida sem direção, caminhando contra o vento, sem lenço sem documento. E Jabor queria justamente entender por que o povo não reagiu ao golpe. Em que zona de conforto ele vivia para justificar tal passividade e leniência. Na verdade, todos os cineatas do Cinema-Novo pareciam caminhar na mesma direção investigativa, sem lenço mas com todos os documentos.

Diante das lentes de Jabor em A Opinião Pública desfilam jovens de turminhas de rua, velhos aposentados, mulheres afetivamente desenganadas, adolescentes apaixonadas, funcionários públicos injustamente assalariados, ex-militares sonhadores, crianças fazendo macaquices, fanáticos religiosos, estudantes frustrados, e mais outras representações pitorescas da nossa classe média em 1967.

O filme tem um roteiro bem urdido, mantém a nossa atenção, principalmente se estabelecemos alguma espécie de ligação com toda aquela alienação, na boa vida que ainda construímos para superar as mazelas do dia-a-dia, como a remanescente cegueira às diferenças de classes, à violência urbana e sua conseqüente insegurança, ao preconceito, à corrupção, à injustiça social e por aí vai, numa revisão rápida de uma sociedade que parece não ter saído de 1967 , quando ser calada não parecia ser tão ruim assim. Afinal, poderíamos falar de outras maneiras. Aqui também reside o tom irônico do título, segundo Jabor. "A Opinião Pública de uma classe que, na verdade, não tinha opinião."

A cena que de forma figurativa melhor retrata essa postura alienada do povo é a que aparece um ex-militar dando um depoimento sério e conservador, enquanto seu neto dança e faz macaquices ao fundo. Uma imagem bastante elucidativa. A lente de Jabor mostra o inesperado nas cenas da vida privada brasileira, causando surpresas, choques, alegrias e decepções.



terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Nunca é Tarde para Uma Reconciliação

O alto preço que se paga por uma reconciliação difícil mas irremediável é pelo raro valor dos seus benefícios. Atemporalmente tal investimento evolutivo não só põe fim às interprisões grupocármicas como propõe uma reciclagem existencial madura e definitiva

O filme de Andrey Zvyagintsev, O Retorno, é brilhante ao descrever a odisséia de um pai na busca da reconciliação com os dois filhos que há 12 anos ele deixou para trás. Esse é um daqueles filmes que surpreende por narrar com uma simplicidade assustadora um assunto extremamente complexo, como a reconciliação. E o investimento paterno na reconciliação envolve uma aventura numa ilha cercada pelas águas misteriosas de um lago.

Assistimos a tudo apenas como testemunhas dos fatos, se
m direito a maiores esclarecimentos. Simplesmente vivemos os acontecimentos passivos e silenciosos, até que nos vemos remando o bote de volta à terra firme junto com os garotos, esbaforido de cansaço e estupefato com o destino, numa daquelas situações em que achamos que a realidade perdeu totalmente o sentido.

O pai aqui é a figura do desconhecido, um homem de quem os garotos não se lembram, apesar das fotos da família 12 anos atrás. O pai aqui é também uma figura deslocada no tempo e no timing dos meninos e destituída de sua função por direito. Sua autoridade é imposta, fria, agressiva e caricata, e quando tenta ganhar contornos reais é duramente questionada. Numa das cenas mais fort
es do filme um dos filhos pergunta, " por que você voltou ?" E quando não expressa, essa mesma pergunta ecoa em cada cena em que os garotos estão na companhia do pai. Há igualmente que considerarmos que o filme discute o sentido da paternidade e a imagem do pai para os filhos. Por que alguns homens que, de caso pensado, optam por uma vida independente, deixando para trás mulher e filhos, pensam que a paternidade é um cargo vitalício ? E ao mesmo tempo em que a dupla de meninos reluta em aceitar esse novo homem em suas vidas, vindo do nada e impondo uma autoridade fora da validade, ela embarca nessa viagem com uma grande interrogação interior - é como dizer "queremos um pai, mas não conseguimos vê-lo nesse desconhecido."Ser pai não é uma condição vitalícia, conquistada com uma imposição biológica, mas uma condição que deve ser renovada sempre, continuamente, em parceria com a família.

A maternidade, por outro lado, tem elos físicos indeléveis, tão mais sérios quanto emocionalmente vulneráveis, pois desde o primeiro momento de vida a mãe cria um ligação vital com o filho. Depois de 12 anos, não podemos tomar a priori que um pai continua sendo pai no sentido sentimental da palavra e os laços biológicos não são suficientes para impor um retorno sem reconquistas. Essa é a grande dificuldade do pai no filme, pois ele, além do explícito mistério que envolve sua vida pessoal, não é do tipo amoroso e emocionalk, e isso deixa em aberto a lacuna mais carente dos meninos: a segurança paterna. A reconciliação aqui não se faz tão facilmente porque o valor de ser pai esbarra numa mágoa difícil de ser superada pelos filhos, e ainda mais improvavelmente com o menor, mais resistente e ferido com a ausência paterna. A seu modo, o pai segue na sua labuta familiar e porque não dizer existencial, dada a importância daquela reconciliação, tentando aparar as arestas deixadas com sua ausência. Mas ao seu modo concreto, frio, e incorporado numa negativa do seu passado longe da família, ele se perde numa realidade sem conexão com a dos filhos - ao ponto dos próprios filhos não entenderem o que ele pretende com aquela viagem. Tarde demais para ser pai ?
Dele não deve ser tirado os méritos deste esforço, pois a sua intenção é hígida. Ele quer reconciliar-se e faz por isso. Talvez estivesse fazendo muito mais do que sempre fez em outras situações da sua vida e naquele patamar seus sentimentos fossem os mais atualizados evolutivamente falando. Isso resume o sucesso da sua empreitada pessoal e notadamente ele dá, de fato, um passo a frente quando, ao final, se torna um mártir de si mesmo. A desafinidade é um tipo de afinidade negativa (p.66), coloca Málu Balona em seu excelente livro Autocura Através da Reconciliação. E ela continua, "desafeição é basicamente incomunicação. O outro não tem o código de acesso para a informação que está sendo transmitida, não raro devido à simples falta de experiência compatível (p.67)." Quando numa das cenas finais do filme o pai diz ao filho em fúria que ele estava equivocado e que não havia entendido a sua intenção (de pai), vemos claramente que a comunicação entre pai e filhos havia sido falha simplesmente pelo pai não falar a mesma linguagem dos filhos, obviamente pela falta da experiência familiar ao longo dos último 12 anos. Sobre isso, Laplanche & Pontalis (1970) coloca, "como não há ressonância, entendimento ou compreensão daquilo que está sendo comunicado, reivindicado ou reclamado," e aqui isso refere-se à condição do pai, "sentimos que, de ambas as partes, os nossos esforços não têm eco, que não valem apena, que estamos perdendo tempo. Surge a frustração e o ressentimento é retroalimentado."De forma condensada, o filme revela que o atraso do papel do pai na vida dos filhos traz suas conseqüências, e a mais significativa é através do medo de altura do menor. De maneira figurativa, ironicamente, ele supera esse medo a partir de uma experiência com o pai. O filme começa com uma experiência traumática: Ivan, o caçula, não consegue mergulhar do alto de uma torre de observação, ao contrário de todos os seus amigos e, inclusive, do seu irmão. Pior do que isso, ele não consegue descer de lá, até ser retirado pela mãe. Nas cenas finais, ele volta a subir numa torre de observação, desta vez fugindo do pai e ameaçando se jogar de lá. Adquire então uma força de vontade emblemática com a presença do pai, que, na verdade, de maneira descontrolada, faz extrapolar a coragem do filho. Essa cena simboliza exatamente o efeito maior do retorno do pai - uma grande interrogação, que pode ser também interpretada pelo desconhecimento mútuo de duas gerações de russos. Segundo o crítico Marcelo Hessel, a severidade do pai, proveniente de uma educação da antiga União Soviética totalitária, contrasta com o comportamento de uma geração que surge a partir dos anos 90, com ranços de abandono e que necessita de uma renovação humanista e solidária.

Entre essa grande pergunta sobre quem é esse homem até o que ele é capaz de fazer para recuperar o respeito dos filhos há uma lacuna quase impossível de ser preenchida. Quase impossível porque, quando queremos reconciliar de fato com alguém, ela, a reconciliação, de alguma forma, em algum momento, acontece.

Título em Português: O Retorno; Título Original: Vozvrashcheniye; Ano de Produção: 2003; País: Rússia; Duração: 105': Gênero: Drama; Direção: Andrey Zvyagintsev;
Site Oficial: http://www.cinema.com.hk/return.