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sábado, 28 de março de 2009

De Amor e Outros Males

Com a Reforma Protestante do século XVI, os princípios bíblicos da justificação pela fé e do sacerdócio universal foram novamente colocados em foco. Enquanto Lutero, Calvino, Zwinglio mantiveram o batismo infantil e a vinculação da igreja ao Estado, os anabatistas liderados por Georg Blaurock, Conrad Grebel e Félixa Manz ansiavam por uma reforma mais profunda. Os anabatistas, assim chamados por defenderem o batismo somente de pessoas realmente crentes, fundaram então sua primeira igreja no dia 21 de janeiro de 1525, próximo a Zurique, na Suíça, de acordo com a doutrina e conduta cristãs pregadas no Novo Testamento. O testemunho pessoal e a perseguição religiosa levaram os anabatistas e a nova doutrina a diferentes países da Europa, surgindo inúmeras igrejas inicialmente na Prússia (atual Alemanha), Áustria e Holanda. Neste último país, um dos grandes líderes anabatistas foi Menno Simons (1496-1561), cuja influência sobre o grupo foi tão profunda que seus adversários passaram a chamar aos anabatistas de menonitas

As comunidades menonitas no norte do M
éxico hoje imprimem uma identidade de rejeição ao progresso, pacifismo e isolamento. Embora já utilizem carros e os avanços da medicina, ainda recusam o progresso tecnológico e das comunicações com o mundo exterior. Não sabem o que é telefone, internet e aparelhos celulares. Estabeleceram-se ali em 1922, fugindo das restrições do governo canadense. Sua doutrina caracteriza-se por conservar sua fidelidade às crenças de amor e trabalho, com forte embasamento moral na família e nos bons costumes. Entre os bons costumes figura, por exemplo, que tudo deve ser feito sem usar a energia elétrica. A atmosfera é extremamente campestre, agrícola e rudimentar. Os menonitas produzem o melhor queijo do México, conhecido como Queijo Chihuahua. Visitar as colônias menonitas é transportar-se para a Holanda do princípio do século. Cada campo está bem organizado com uma rua central e pequenas granjas aos lados, e cada uma com sua horta, paiol, estábulo, moinho de vento e feituria de queijo. A igreja e a escola encontram-se no meio do campo. Os menonitas provocaram o crescimento da região com seu trabalho. Seus trajes lembram aqueles medievalescos e os olhos azuis e os cabelos loiros estão longe de uma identificação com o perfil latino. Mas
essa distinção
do restante da população mexicana é também o que os tornou famosos.

É nesse cenário notadamente religioso, guiado pelo anti-progresso tecnológico e enraizado nos bons costumes da família que o filme de Reygadas rompe o silêncio com uma estória de paixão febril e amor impossível. Filmado com um elenco de não-atores, membros reais de uma comunidade menonita do norte do México, Luz Silenciosa ganha carga emocional e documentação histórica na tela. No filme tudo parece real porque o cenário assim como os personagens são verdadeiros - isto é, aquela é de fato uma comunidade menonita e aquelas pessoas são de fato menonitas. Tais referenciais produzem uma força extra às cenas. Mas aqui o protagonista é mesmo o silêncio. Ele permeia toda a estória com seus gritos inaudíveis e sussurros de êxtase, medo e ansiedade, contrasta a vida pacata e rotineira de um cidade minúscula no meio do deserto com a urgência de um amor proibido e inevitável, sem mistérios nem escondimentos. No filme, tudo é muito claro por incrível que isso pareça. É interessante ver como a vida parece brincar com coisa séria. Uma comunidade menonita, que cultua a rigidez dos princípios morais e ainda possui sólida devoção à religião e ao trabalho, não consegue afastar de si um caso de adultério, que se torna evidente entre os envolvidos, mesmo que tal evento seja indigno de seus habitantes, assim como tudo que refere-se ao prazer da carne.

Apesar de viverem numa cultura ortodoxa, severa, sem qualquer senso de humor e tolerância zero para qualquer tipo de desvio de conduta, numa das cenas, pai e filho compartilham de
alguma forma o mesmo mal. O pai de Johan, o menonita casado e pai de família que se apaixona por uma outra mulher, confessa já ter se apaixonado por outra mulher quando jovem, mas evitou a tempo o contato carnal porque sabia que a aventura amorosa não daria certo e nem poderia durar muito. O filho, ao contrário, cedeu à tentação e agora agoniza num amor sem redenção. O triângulo amoroso antiquado padece cada um à sua maneira. Com a vida evoluindo em ritmo lento, os personagens se tornam presas comoventes desse amor sem cura nem futuro, apenas com um presente de sofrimento e impossibilidades. Esse sofrer de amor se reflete num ritmo de pesadelo. Os planos de camera são longos, lentos, de uma fotografia sem pressa, de lindas imagens que se desenvolvem quase em tempo real. Nesses momentos, lembrei dos planos de Andrei Tarkowski em O Sacrifício. Depois soube que Reygadas o tem como um ícone do cinema e fonte de inspiração para seus filmes. De fato, as imagens se alongam na tela e fazem refletir, aumenta a tensão das cenas e a impaciência do espectador também, mas acabam sustentando a progressão dramática da estória.

Há algumas particularidades nesse filme por ser em tese um produto mexicano. A produção é internacional, a língua falada é o holândes, quase nada se vê do México culturalmente falando, os atores têm olhos azuis e cabelos loiros, não há trilha sonora, há poucos diálogos, os enquadramentos não são convencionais, a pequena cidade parece americana. Quase no fim do filme vemos dois homens que falam espanhol na estrada, e isso é tudo o que de mais próximo temos do México. Mas tudo é colocado com o firme propósito de levar a estória para uma intensidade dramática incômoda e nisso o filme é eficaz. Os personagens vivem seus dramas pessoais com uma esperança latente de que suas vidas sobrevivam a tudo aquilo. Movem-se em busca de algum tipo de transcedência às vicissitudes de uma realidade que os assola, drena e os arrasta para o sofrimento inevitável.

O ponto alto do filme fica por conta da fotografia e, sobretudo, da maneira como Reygadas trata a questão da traição no casamento. Nesse caso específico, ele ressalta a inevitabilidade do amor entre duas pessoas que o conhecem de uma forma quase equivocada, num momento impróprio de suas vidas, mas que tentam vivê-lo como podem, quebrando regras e paradigmas, certezas e princípios, arrastando-se até o final como que no limbo da frustração e da decepção, tropeçando no destino e esbarrando na morte. Há tanto de esperança quanto de desesperança, tanto de sofrimento quanto de alívio. Há uma pequena obra prima em Luz Silenciosa, traços de uma bela pintura, quadros de imagens que ficarão na memória de todo bom cinéfilo que cultua a beleza nas telas.

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